domingo, janeiro 29, 2006

Um português perdido na Coreia do Sul...

Para quem costuma ler este espaço, já sabe que a crise de inspiração costuma dar azo a recuperar escritos antigos. Desta vez há várias desculpas, como o Novo Ano Lunar, os novos Contactos a caminho da Coreia, e a descoberta de um texto perdido que escrevi em Março de 2001, acerca da minha estadia na Coreia no ano da graça de 2000. Enjoy!

«As pessoas são todas iguais. Apenas os seus costumes são diferentes.»

Confúcio

Já são poucos os Coreanos que se lembram de uma portuguesa chamada Rosa Mota que, um dia, ganhou a medalha de ouro da maratona nos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988. Mas, foi mais uma vez o desporto a despertar o interesse do povo Coreano nesse país que lhes fica tão distante chamado Portugal. No Verão de 2000, não havia um único Coreano fã de desporto que não soubesse pronunciar nomes como Figo, Nuno Gomes ou Sérgio Conceição, resultado da boa prestação da selecção nacional no Campeonato Europeu de Futebol. Mais uma vez, como em tantas outras ocasiões, o futebol, paixão do povo Português, foi o nosso embaixador em terras tão distantes como a Coreia do Sul. Cada vez que me apresentava como Português, a reacção era invariavelmente a mesma: "Portugal??? You play good football!! Figo is a great player!!!". Quanto mais não seja, as nossas vitórias futebolísticas despertavam a curiosidade Coreana para saber mais coisas sobre o nosso pequeno rectângulo plantado no Sul da Europa.

Uma das características que os Coreanos associam ao "ser português" é a ideia de tristeza e nostalgia, muito por via de algum sucesso que o Fado obtém e que é das poucas expressões culturais portuguesas a que a Coreia do Sul vai tendo acesso. Não é, pois, de estranhar que para um Coreano seja estranho que afinal os Portugueses sejam um povo que gosta de se divertir e, especialmente os Portugueses mais jovens, passem noites inteiras em bares e discotecas. Em suma, os Coreanos ouvem Madredeus ou Dulce Pontes e generalizam, idealizando um povo Português que passa a maior parte do tempo tristes.

No entanto, e apesar de todo o desconhecimento que o típico Coreano tem em relação a Portugal, de vez em quando surgem episódios tão insólitos que se tornam recordações para o resto da vida. Não resisto a contar um desses episódios. Tudo se passou no feriado da Páscoa em que alguns Portugueses se juntaram para uma viagem até à província de Kangwondo, na costa Leste da Coreia do Sul. Esta província é famosa pelo Parque Nacional de Sorak-San, uma das mais longas e belas cordilheiras de montanhas que proliferam pelo país. Era já final de tarde de um dia extremamente cansativo e eu mais o Miguel Faria (outro membro do Programa Contacto III) tínhamos acabado de escalar Ulsan-Bawie, uma rocha escarpada com cerca de 650 metros. A paisagem era lindíssima e, como bons turistas que éramos, começamos a tirar algumas fotografias, apesar do intenso vento que soprava e que ameaçava derrubar-nos a qualquer momento. Pedimos a um senhor Coreano que se encontrava no mesmo local se podia tirar-nos uma fotografia. O senhor aceitou gentilmente e depois pediu ao Miguel para tirar uma fotografia dele, comigo ao seu lado. Apresentámo-nos e, quando eu disse que era de Portugal, o senhor arregalou os olhos e, num inglês não muito sofrível, pergunta-me se eu conheço a Serra da Lousã. Assim, sem mais nem menos. A minha surpresa foi tão grande que quase deixava o senhor ir-se embora sem lhe perguntar porque razão conhecia ele uma serra portuguesa que nem sequer é das mais reconhecidas pelos próprios Portugueses. Disse-me ele que tinha ido numa viagem da sua empresa e, como entusiasta do montanhismo que era (ele e mais algumas dezenas de milhões de Coreanos, atrevo-me eu a dizer) tinha ido à Lousã e ao Gerês. A simples ideia de num final de tarde de Abril, a 650 metros de altitude, longe da civilização, na chamada "Coreia profunda", encontrar um Coreano que conhece genuinamente Portugal continua, hoje em dia, a fazer-me tanta confusão como no dia em que aconteceu.

Apesar de tudo, existem alguns Coreanos que conhecem muito bem Portugal e que têm a sua própria ideia do "ser português". Refiro-me aos cerca de 500 estudantes Coreanos que se dedicam à aprendizagem da língua de Camões. Alguns, para além dos anos de estudo na Coreia, tiveram breves passagens por cidades como Lisboa, Coimbra ou Porto, com o objectivo de aprimorarem ainda mais o seu domínio da língua Portuguesa. Esta situação só não se tornou mais estranha, pois desde cedo contei entre as minhas amizades com alguns deles, cuja fluência na nossa língua chega a níveis elevados. Para estes, o Português é uma pessoa simpática, extrovertida e que gosta do seu país e de o mostrar a quem o desconhece. Não devemos confundir esta ideia com um patriotismo exacerbado, algo que está bem mais próximo da realidade Coreana.

O desconhecimento do típico Coreano em relação a culturas diferentes daquelas a que se encontra umbilicalmente ligado (como por exemplo a Chinesa ou Japonesa) chega, por vezes, a ser assustador. Não é, pois, mero acaso que durante muitos séculos este país tenha sido apelidado de Estado-Eremita. Uma possível razão para tal procedimento poderá ter a ver com o facto de o país ter sido inúmeras vezes invadido por outros povos, como os Mongóis, os Chineses e, principalmente, os Japoneses, povo contra o qual ainda se mantêm muitas feridas abertas.

Mas a tendência para o povo Coreano se "virar apenas para dentro" é ilustrada por um outro factor. Quase todas as amizades que fiz com pessoas Coreanas, eram pessoas que já tinham estado, pelo menos uma vez, fora do seu país, fosse em negócios, turismo ou estudo. Pode parecer um pormenor insignificante, mas este aspecto traduz um pouco a falta de interesse deste povo por outras culturas e sociedades. E mesmo quando o governo Coreano proclama a abertura do país, esta apenas passa por uma abertura económica, com muito pouco intercâmbio de outras áreas como a cultura, língua, entre outras. Não é, pois, de estranhar que a grande maioria da comunidade estrangeira residente tenha uma opinião muito pouco positiva da sociedade Coreana. O que por sua vez causa uma reacção negativa por parte do povo Coreano. Um bom exemplo são as constantes manifestações de desagrado em frente à Embaixada dos Estados Unidos, cujas forças militares já se encontram no território há mais de 50 anos, e sem as quais provavelmente já teria havido uma invasão por parte da Coreia do Norte. Mesmo assim, os Coreanos desejam ardentemente que os Norte-Americanos saiam do seu território. Mas já que falo em manifestações, aproveito para contar mais uma pequena história que demonstra as diferenças culturais entre Portugal e a Coreia do Sul. Ocorrem normalmente manifestações de trabalhadores dos grandes grupos económicos (como a Hyundai ou a Samsung), especialmente no último ano quando muito se falou em reduzir a semana de trabalho para cinco dias úteis (!!!). Dois dias depois de uma dessas manifestações ter ocorrido, e de eu ter sido "apanhado" no meio da mesma (impossibilitando-me de arranjar um táxi num raio de um ou dois quilómetros), recebi um e-mail de Portugal, da parte de um dos meus melhores amigos. O comentário dele rezava mais ou menos como "ontem vi na televisão uma manifestação aí em Seul, mas fiquei com algumas dúvidas: aquilo era uma manifestação ou um concerto rock???". Pois, é que para além das habituais palavras de ordem, como em Portugal, é normal assistirem-se nestas ocasiões a demonstrações de dança, música ou mesmo artes marciais. Choque cultural? Sem dúvida.

Poder-se-ia pensar na Coreia do Sul, e particularmente em Seul, como um ambiente cosmopolita, muito por via da disseminação de vários milhares de pessoas das mais díspares nacionalidades possíveis. No entanto, tal ideia não podia ser mais errónea. A sociedade Coreana mantém-se, no seu âmago, conservadora e tradicionalista, uma característica sustentada com muito orgulho pelo povo Coreano. A imagem que fica, para um Português que observe esta sociedade, é a de um certo paralelismo com a sociedade Portuguesa de há 40 ou 50 anos atrás, especialmente durante o período do Estado Novo. A ideia da família como sustentáculo da sociedade, o casamento como forma de aceitação social, as instituições como ponto de orientação de toda a massa populacional, o papel central da religião (nas suas mais diversas formas de expressão de credo), são factores que atravessam toda a sociedade Coreana, mesmo aquela que vive no meio dos arranha-céus e apartamentos da capital, Seul.

Para além destas características, surge uma que consegue estar acima de todas as outras: a honra, o "não perder a face". Embrenhada em toda uma série de tradições e costumes ancestrais, a questão da honra para um Coreano é tudo menos secundária. Seja em relação à sua família, em relação à sua empresa, ou em relação ao seu país, a honra vem sempre em primeiro lugar e torna-se uma catástrofe quando é perdida. Não foi à toa que todos os Coreanos tiveram vergonha quando o seu governo se viu na contingência de pedir ao Fundo Monetário Internacional um empréstimo de modo a fazer face à crise económica de 1997/98. Mas, um episódio que aconteceu com um rapaz americano a viver em Seul ilustra ainda melhor este ponto. O Mathew tinha conhecido uma rapariga Coreana numa das zonas de bares de Seul. Simpatizaram um com o outro e saíram várias vezes juntos. Contudo, Mathew queria um relacionamento mais íntimo e ela não estava interessada. Ficaram amigos mas não se encontraram durante uns tempos. Passado um mês, mês e meio, Mathew voltou a encontrar a rapariga e ficou a saber que os pais a tinham expulso de casa, depois de terem ficado a saber das suas saídas juntos. Nada tinha acontecido, mas mesmo assim os pais da rapariga sentiram-se desonrados e não estiveram com meias medidas. Mas, e de acordo com outras histórias que fui ouvindo enquanto vivi na Coreia do Sul, também não me teria custado ouvir algo como os pais irem atrás dele e colocarem a sua saúde física em risco (a do Mathew, entenda-se).

Aos olhos de um Europeu, a Ásia continua ainda a ser um continente misterioso, tão distante dos nosso costumes como a distância física que nos separa. Mas, o inverso pode ser e é também verdadeiro. Tal como para nós pode ser muito estranho comer uma refeição sentado no chão, também para um Coreano pode ser absurdo haver um país onde não se come peixe cru.

Tendo em conta tudo o que ficou descrito atrás, pode afirmar-se que tanto o povo Português como o Coreano desconhecem-se mutuamente, mas provavelmente há mais curiosidade da nossa parte do que da deles. Recorrendo à minha experiência pessoal, consegui conhecer muito aspectos desta sociedade, ao mesmo tempo que, limitado às poucas pessoas que sentiam curiosidade, dava a conhecer um pouco de Portugal e dos Portugueses. No entanto, assim que cheguei a Portugal, têm havido muito poucas pessoas que não perguntam quase imediatamente por assuntos relacionados com a vida na Coreia. São duas culturas que acabam por ter muito pouco a ver uma com a outra. Se pudesse nomear uma característica que seja comum a ambos povos, e será talvez a única, é o facto de ambos serem impulsivos, ou seja, reagirem primeiro e pensarem depois. No entanto, o Coreano leva isto às últimas consequências, fazendo com que a sua sociedade seja uma de extremos, onde é impossível haver um meio termo. Exemplificando, é inconcebível um Coreano ir jantar com os amigos e não sair do restaurante sem ser embriagado. É inconcebível um trabalhador Coreano sair da empresa antes do seu superior hierárquico. É inconcebível haver um feriado religioso em que o Coreano não vá juntar-se à sua família, passando, durante o processo horas e horas nas auto-estradas completamente entupidas de automóveis.

Concluindo, a minha experiência na Coreia do Sul foi extremamente enriquecedora, pois permitiu-me conhecer um país cuja cultura é exactamente o oposto da Portuguesa, com pouquíssimos pontos de contacto entre ambas. No entanto, duas coisas interessantes aconteceram. O meu gosto de ser Português saiu reforçado, mas a minha capacidade crítica das coisas menos positivas da sociedade Portuguesa, bem como o enaltecimento das positivas, foi alterada e, de certa forma, melhorada. Por outro lado, nasceu em mim uma grande "paixão" pelo ar que se respira na Ásia, e particularmente pela Coreia do Sul. Hoje em dia, digo sem qualquer hesitação que será um país que ficará sempre comigo. Só um reparo: precisa-se urgentemente de uma forte exportação dos cafés do Sr. Nabeiro para a Coreia do Sul, pois só com essa cafeína pura, ao contrário dos cafés ditos americanos que nos tentam impingir em cada canto de Seul, se pode aguentar o ritmo de vida de um país como a Coreia do Sul.

6 comentários:

Anónimo disse...

Muito interessante registo "diarístico-memorial", em todos os aspectos! Realço talvez apenas a graça do verso e reverso das culturas, tão bem expresso na ideia de ver um coreano "de olhos em bico": "o quê, vocês lá não comem peixe cru?!" E noto,pelas linhas finais, como se confirma a ideia de que todas as vigens, ao fim e ao cabo, são-no também ao interior de nós mesmos, pelo que "mexem" connosco...

Nuno Guronsan disse...

Meu caro anónimo, a tua última frase é um excelente resumo do que foi o meu ano de 2000...

M. disse...

Fizeste-me recordar o meu ano de 2003... Que, de tão diferente, foi tão parecido...

Acho que nunca voltamos a pertender a quem fomos depois de regressar a Portugal. Ou, mesmo que não voltemos, depois do ano C. Há qualquer coisa que muda em nós e viva o Pinto dos Santos por nos explicar iso ;)

É como se tivessemos deixado de ter raizes em apenas um sítio e passassemos a pertencer a todos os países, todas as cidades, todas as casas, todas as pessoas que nos habitam.

Obrigada pela viagem pela alameda da memória!

Anónimo disse...

Quanto a afirmação de que o povo coreano desconhece outras culturas, em particular a portuguesa, eu discordo num ponto: a culpa não é do povo ou do governo coreano, mas sim do proprio governo portugues através da sua Embaixada em Seoul, a exemplo do que ocorre com o governo brasileiro e Embaixada brasileira em Seoul. Morei na Coreia do Sul por tres anos, diga-se de passagem, os melhores anos da minha vida. É uma pena que os responsáveis pela divulgação dos seus países de origem, no caso de Portugal e Brasil, pouco ou quase nada fazem nesse sentido. A culpa não é do povo coreano, mas dos governos de países que substimam o potencial turístico que a Coréia representa para qualquer pais do mundo, seja ele primeiro ou terceiro-mundista. Temos muito que aprender com os coreanos. Um povo que me ensinou a amar o seu país fazendo me sentir orgulhoso de me achar meio coreano, embora sendo brasileiro e de cor morena. Nunca em meu país o Brasil, fui tão respeitado como profissional, como gente, sté mesmo como brasileiro. Amo a Coreia, e muito mais o povo coreno. Quanta saudade!

Silesha disse...

Olá,
após ter visto uma telenovela sul coreana no youtube fiquei muito curiosa sobre este povo.
De modo que procurei textos de pessoas que conviveram com eles.
Quando já desesperava de encontrar alguns topei com o teu que simplesmente adorei.
Só uma curiosidade que espero que não seja indiscreta: entretanto voltaste a este país?
Se o fizeste pareceu-te que a maneira de ser das pessoas mudou um pouco que seja nas suas camadas mais jovens ou estão iguais?
Beijinhos,
Paula Benvinda (Porto)

Nuno Guronsan disse...

Olá, Paula!
Obrigado pelas simpáticas palavras.
Efectivamente, depois de 2000, não voltei a pisar solo coreano. Portanto o conhecimento que tenho é do que leio e vejo em notícias soltas, e de alguns mails que vou recebendo de amizades que ficaram por lá. Presumo que as coisas continuem em permanente mudança, como já vinha assistindo em 2000. Os jovens, independentemente do país, serão sempre os representantes da vaga de mudança de atitudes e comportamentos. Imagino que continuem a lutar por um espaço próprio na conservadora sociedade coreana. Nestes dez anos que passaram, tenho imensa pena que pouco se tenha evoluído no processo de paz entre as Coreias. Em 2000 assisti, eu e amigos meus coreanos, emocionado aos primeiros reencontros de famílias divididas pela Guerra da Coreia. Dez anos depois, as coisas continuam paradas e até sofreram alguns retrocessos (ver programa nuclear norte-coreano). Mas tenho imens curiosidade para lá voltar um dia, veremos quando...

Obrigado, mais uma vez.
Beijocas.