Ela ia percorrendo os corredores, com o seu carrinho de compras. Estava de férias e eram poucas as oportunidade que tinha para andar ali num dia menos agitado. Normalmente via-se forçada a ir ali ao fim-de-semana, quando a confusão era mais que muita, nunca tinha tempo para percorrer outros corredores que não fossem os da mercearia ou os dos frescos. E mesmo assim acabava sempre por se esquecer de alguma coisa. Hoje seria diferente. Tinha todo o tempo do mundo e podia fazer as suas compras ao seu ritmo, o ritmo das férias pelas quais tinha tanto ansiado.
Curvou para o corredor das massas, tinha a intenção de fazer algo para o jantar dessa noite, algo especial. Sentiu o fresco do ar condicionado quebrar sob a luz quente que vinha do lado de fora da clarabóia. Olhou para cima e fechou os olhos, a luz era demasiado intensa. Estava um dia bonito, demasiado bonito para passá-lo todo dentro de um supermercado. Começou à procura do tagliatelle de que gostava, quando ouviu a música que estava a passar. Sorriu. E começou a trauteá-la, com a perfeita certeza de que o dia ia ser excelente.
Ele estava de cócoras, enchendo uma prateleira mais baixa e nem deu pela presença de outra pessoa no corredor. Afinal, já há uns bons quinze minutos que estava ali sozinho, apenas com a companhia das caixas de massas várias que tinha para repor. Mas depois houve algo que o perturbou. Que o despertou do estado quase robótico em que se encontrava. Alguém trauteava a canção que se ouvia no som. Mas não era uma canção qualquer, era aquela canção. Uma canção que ele até hoje tinha dificuldade em compreender porque razão passava no som ambiente. Mas era uma canção que ele quase venerava, de tanta energia positiva ela lhe dava. E agora estava ali alguém no corredor a trautear essa mesma canção. Olhou para ela, estava à procura de algo nas prateleiras e estava mesmo a trautear a "sua" música, não era engano dos seus ouvidos. Ela era bonita, de uma beleza muito pouco artificial, ao contrário das mulheres que quase todos os dias passavam pelo seu corredor. E isso só fazia com que ele ficasse ainda mais interessado em observá-la em todos os seus movimentos.
De repente os seus olhares cruzaram-se. Ela já tinha procurado em vão o artigo que pretendia e quando o viu, com a farda usual dos funcionários, viu também uma solução para o seu problema. Ele e o seu olhar, "fugiram" envergonhados para a prateleira, tinha receio que ela pensasse mal dele por estar a observá-la e surgisse um enorme equívoco. Limpou o suor da testa enquanto se apercebia que ela se encaminhava para ele. Levantou-se e cumprimentou-a como se fosse uma cliente como tantas outras. Ela observou-o a levantar-se e ficou surpreendida com a aparência dele, por trás do "véu" da farda. Gostou especialmente da cara dele, dos traços que pareciam revelar alguém extraordinário num ambiente perfeitamente comum como aquele. Cumprimentou-o e perguntou-lhe se tinham o tagliatelle que ela procurava. Ele disse-lhe que iam deixar de ter essa marca italiana mas pediu-lhe que aguardasse pois ainda havia algum stock no armazém.
Na espera dela e no vai-vém dele entre armazém e loja, a música continuou a ecoar por todo o espaço. E eles os dois continuavam a trauteá-la e a sorrirem e a sonharem com um dia perfeito, num mundo perfeito.
Ele entregou-lhe a massa que ela procurava e, mais do que o sentido do dever cumprido, sentiu uma enorme satisfação por poder ajudar aquela mulher tão bela e tão intrigante. Ela agradeceu-lhe mil vezes pela ajuda e fitou-o mais uma vez e reparou nos seus olhos azuis, belos e profundos. Despediram-se, deram os bons dias, ela dirigiu-se para a caixa e ele continuou a sua tarefa de reposição. E por cima deles ouviram-se as últimas notas de uma canção que ambos tinham partilhado por uns breves momentos...