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sexta-feira, abril 17, 2015

Fonte

VI

"Estás verdadeiramente deitada. É impossível gritar sobre esse abismo
onde rolam os cálices transparentes da primavera
de há vinte e dois anos. Quando aperto as pálpebras
ou descubro o teu nome como uma paisagem,
só há grutas virgens onde os candelabros se apagam.
Mãe, pouco resta de ti na exaltação do mundo. Às vezes
misturas-te um pouco nos terrores da noite ou olhas-me,
vertiginosa e triste, através
das palavras.

No outro lado da mesa estás inteiramente
morta. Parece que sorris de leve no meu
pensamento, mas sei que é apenas
a solidão espantada. Como pudeste morrer
tão violenta e fria,
quando os meus dedos começavam a agarrar-te
a cabeça inclinada dentro
das luzes? Não podes levantar-te dos retratos antigos
onde procuro afogar-me como uma criança
nocturna. E não atravessaremos juntos as cidades redentoras,
perdidos um no outro, sorrindo
como se estivéssemos debaixo de uma árvore inspirada e eterna.

Conheço algumas cidades da europa e a fantasia vagarosa
da cidade da minha infância.
Tu desapareceste. É um erro
das musas distraídas. Não há guindaste que te levante
do coração das águas
onde apodreceste envolvida no halo do teu amor invisível,
ou recolhida na tua carne rápida, ou
ligeiramente tocada pelo ardor
de uma existência pura. Conheço grandes casas
onde não habitas, flores que cheiro, tarefas
silenciosas que cumpro humildemente, e luzes,
instrumentos de música,
laranjas que devoro sentindo o gosto da vida desde a garganta
às mais finas raízes das vísceras. Tu
desapareceste.

Imagino que seria possível tocares porventura
a minha boca. Tocares-me tão viva ou tão misteriosamente
que eu estremecesse nas traves
da cega inspiração. Poderias estar vergada sobre os meus
ombros até que as lágrimas
na minha boca se confundissem com a ansiosa subtileza
dos teus dedos, e eu me sentisse
perdido entre os pilares e os túneis das cidades
ressoantes.

Depois talvez pudesses vir com o rosto um pouco coberto de poeira,
e os olhos delicados de mulher restituída,
e os pés brilhando sobre os caminhos do meu silêncio exaltado
- talvez
pudesses salvar-me como uma palavra pode
salvar um pensamento, ou uma
breve música pode acordar do abismo inocente
da noite
um instrumento encerrado nas cordas extenuadas."

Herberto Helder



domingo, abril 05, 2015

o amor em visita

"(...)

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

(...)"

Herberto Helder

 

quarta-feira, maio 21, 2014

Vida e obra de um poeta

   "Hoje, nada sei de quem me amou ou ama. Nada me
reparte no tempo. Abro-me à unidade da vida - e amo o
passado e o futuro com um só fervor: completo. A geografia
não existe. Quem está em Joanesburgo e me ama ou possui
um breve poema rabiscado nas costas de um envelope, ou
quem me odeia em Roterdão e apenas tem algumas palavras
sem destinatário, nada poderá supor da minha lenta maturi-
dade. Esses papéis pouco valem, e esses sentimentos (de amor
e ódio). Vale quem sou. Ultrapasso as palavras escritas aos
trinta anos. O poema que agora escrevesse diria como estou
pronto para morrer, referiria enfim a excelência do meu corpo
urdido nas aventuras da solidão e da comunhão, e falaria de
tudo quanto auxilia um homem no seu ofício - a ferocidade
dos outros, o apartamento, ou o seu amor que, ferido pela
ignorância, se inclina para ele, para o seu trabalho, o desejo, a
expectativa. Morrerei como se fosse numa retrete de Paris -
só, com a minha visão, o pressentido segredo das coisas.
   E é na morte de um poeta que se principia a ver que o
mundo é eterno."

Herberto Helder

sexta-feira, abril 18, 2014

Aquele que dá a vida

"Um touro preto é uma espécie de massa rebarbativa, com
uma obscura vida interna onde se imagina que circulam ima-
gens fundas e carregadas. É difícil discernir os teoremas que,
pela acção, vai demonstrar. E a maneira como o fará, com
suas improvisações e inspirações repentinas. Mas existe uma
fenda nesse sistema de energias, a ponta de um ferro, a imper-
ceptível abertura oferecida pelo destino à derrota e à morte.
Pois cada criatura subtilmente se conjuga com os impulsos da
destruição. Tecido de imperscrutáveis forças que de súbito se
animam. É um jogo cerrado, difícil."

Herberto Helder


quinta-feira, fevereiro 02, 2012

palavras para amanhã

"Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve
no tempo mais antigo.
Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer,
sorrindo com ironia e doçura no fundo
de um alto segredo que os restitui à lama.
De doces mãos irreprimíveis.
- Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,
as casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.

Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta
do gosto, o entusiasmo do mundo.
Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio
admirável das fontes –
pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste
como fogo exemplar.
Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas
um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores
tenebrosas, e temos memória
e absorvente melancolia
e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos.

Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos,
espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos
que não viram as torrentes infindáveis
das rosas, ou as águas permanentes,
ou um sinal de eternidade espalhado nos corações
rápidos.
- Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam
pelos muitos sentidos dos meses,
dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra,
para que se faça uma ordem, uma duração,
uma beleza contra a força divina?

Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha.
Alguém viera do mar.
Alguém chegara do estrangeiro, coberto de pó.
Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos,
inspirações.
- Estas casas serão destruídas.
Como um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente
no seu casamento solar, assim
se esgotará cada casa, esbulhada de um fogo,
vergando a demorada cabeça para os rios misteriosos
da terra
onde os próprios arquitectos se desfazem com suas mãos
múltiplas, as caras ardendo nas velozes
iluminações.

Falemos de casas. É verão, outono,
nome profuso entre as paisagens inclinadas
Traziam o sal, os construtores
da alma, comportavam em si
restituidores deslumbramentos em presença da suspensão
de animais e estrelas,
imaginavam bem a pureza com homens e mulheres
ao lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente,
tocando uns nos outros –
comovidos, difíceis, dadivosos,
ardendo devagar.

Só um instante em cada primavera se encontravam
com o junquilho original,
arrefeciam o resto do ano, eram breves os mestres
da inspiração.
- E as casas levantavam-se
sobre as águas ao comprido do céu.
Mas casas, arquitectos, encantadas trocas de carne
doce e obsessiva - tudo isso
está longe da canção que era preciso escrever.

- E de tudo os espelhos são a invenção mais impura.

Falemos de casas, da morte. Casas são rosas
Para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança
Nos abandona para sempre.
Casas são rios diuturnos, nocturnos rios
Celestes que fulguram lentamente
Até uma baía fria – que talvez não exista,
como uma secreta eternidade.

Falemos de casas como quem fala da sua alma,
Entre um incêndio,
Junto ao modelo das searas,
na aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e morrer com um pouco, um pouco
de beleza."

Herberto Helder


(Haja casas. Muitas. Uma aqui, outra além, outra acolá. Sempre.)

(a dobrar)