quinta-feira, janeiro 28, 2010

Empreendorismo

Não se consegue resistir ao poderio da Maçã Trincada...
Ele é o iPod, o iPhone, o iPad...
Pois bem, e eu apresento em primeira mão...

o iCaramba.


(aceitam-se sugestões para a sua utilização.)

sexta-feira, janeiro 22, 2010

O velho

Lembro-me que era das primeiras coisas que ouvia quando acordava. Primeiro apareciam os pios dos passáros que poisavam nas macieiras do pátio das traseiras. Depois era invariavelmente o canto dos sinos da igreja da terra, logo seguido orquestralmente pelos sinos das igrejas das terras vizinhas, o eco de todos esses sinos atravessando os vales e as terras onde já se cultivava desde que o sol se tinha levantado. E era então que começava a ouvir o sussurro de alguém que parecia entoar uma ladainha, repetindo as palavras tão rapidamente para que ninguém as pudesse perceber. Só quando o som que vinha do rádio se sobrepunha às palavras, só nessa altura se percebia que quem quer que estivesse a murmurar, estava na realidade a rezar. Um ciclo de rezas que parecia não ter fim e que normalmente durava toda a manhã.

Chamavam-lhe Pap'Arroz. Uma daquelas alcunhas que vinham dos tempos de infância e que atravessavam o tempo, agarrando-se ao nome de todas as pessoas que viviam na aldeia e as acompanhavam até ao fim dos seus dias. Nunca cheguei a perguntar o porquê daquele nome e, na verdade, não sei explicar porque nunca o fiz. Sabia, por exemplo, porque é que a minha avó chamava Ganso ao meu pai. Sabia porque é que o meu avô tinha o pregão de Pinguinhas agrafado ao seu nome. Mas o porquê daquele eremita-que-não-o-era-verdadeiramente se chamar Pap'Arroz, nunca me ocorreu perguntar.

A figura daquele homem velho atravessou boa parte da minha infância, sempre que passava férias na velha aldeia onde os meus pais e os pais deles todos nasceram. Lembro-me da sua casa, antiga como poucas naquela parte da aldeia, onde começavam a surgir a toda a volta vivendas compradas e construídas com as divisas que chegavam de outros países europeus. Era uma casa feita de pedra, com um aspecto tão duro e desgastado como o homem que a habitava. A porta da casa era, como muitas na aldeia, "partida" ao meio, permitindo que a parte de baixo ficasse fechada, enquanto a parte de cima podia ficar aberta, tornando-se mais uma janela para ver o que se passava lá fora. Era por aí que surgia, logo pela manhã, o som da missa pelo éter, acompanhado pela ladainha oratória do homem.

Raramente vi aquele homem sair da sua casa. Talvez numa ou outra procissão, sempre atrás de todas as outras pessoas que seguiam os andores. Lembro-me que havia uma única pessoa que o visitava, que lhe levava coisas lá para casa, uma familiar distante que vivia numa aldeia vizinha, do outro lado do rio. Lembro-me ainda que sempre que ocorriam estas visitas, não tardava muito até ouvir os gritos do homem e da familiar, discussões que me deixavam aterrado, ainda com mais medo do que aquele que já sentia por aquela figura. Não que o homem alguma vez me tenha feito mal. Aliás, acho que nunca lhe teria dado oportunidade para tal. Um punhado de vezes tentou mesmo falar comigo mas a sua voz grave como um trovão, ou assim me parecia, era o suficiente para eu desatar a correr pelas escadas acima da casa do meu avô. Aquela voz, as suas roupas quase sempre pretas e gastas, o chapéu com que até dentro de casa andava, e a sua longa barba negra constrastando com os cabelos já esbranquiçados que fugiam por debaixo do chapéu, todo aquele aspecto deixava-me com um medo tal que nem mesmo os enormes cães de guarda da quinta ali ao lado, sempre a latir quando me viam passar, nem esses monstros continuamente a ladrar me deixavam com tanto medo. Era um puto, e os medos e receios que nos assaltam quando somos putos não se explicam. Curiosamente, quando o velho Pap'Arroz rezava, não tinha receio e até cheguei a pensar que eram pessoas diferentes, que nunca o velho de voz de trovão poderia ser a mesma pessoa cujo suave murmúrio entrava todos os dias pela janela. Seja como fôr, acabou por ser uma daquelas pessoas que associava imediatamente aos dias que passava naquela aldeia longe da minha casa. E o tempo foi passando, e eu cresci, e o medo foi-se desvanecendo até não passar de uma memória de criança.

Já estaria na universidade. Foi dos últimos verões que acabei por passar na terra. Daí a algum tempo os meus avós começariam a sua romaria entre as casas das filhas e só nos tornaríamos a encontrar todos na terra em algumas ocasiões especiais e cada vez mais dispersas. Naquele verão fui dar com a casa do velho Pap'Arroz fechada e sem o habitual som do rádio. Perguntei à minha avó. Tinha morrido na passagem do inverno para a primavera. A familiar distante tinha-o encontrado deitado na cama, com as mãos fechadas a segurarem um terço, e já com o rádio silencioso na mesinha de cabeceira. Perguntei à minha avó se tinha ido muita gente ao funeral. Ela quase estranhou a minha pergunta e disse-me que sim, claro que sim, era uma pessoa da terra e nunca as pessoas da terra são deixadas sozinhas enquanto rumam ao seu último lugar de descanso. Disse-me ainda que da próxima vez que fôssemos ao cemitério, levaríamos também algumas flores para deixar na campa do velho.

Fiquei a pensar durante toda a tarde nas suas palavras. E fiquei a pensar também que com o desaparecimento daquele velho eremita-que-não-o-era, também uma parte da minha juventude desaparecia com ele. E que a partir daquele dia só teria a companhia do piar dos pássaros e do repicar dos sinos nas minhas preguiçosas manhãs passadas na aldeia.

sexta-feira, janeiro 15, 2010

Mulher em branco

"pode ser não mais que amarmos sem regras, demora às vezes uma vida percebermos que o amor não tem afinal regras, pode acontecer que o inferno nos guie por vezes, e sem darmos muito por isso estamos numa busca de selva, à procura de outra coisa, de outra coisa que nem sabemos bem o que é, que simplesmente se assemelha muito ao que já tivemos e queremos preservar, às vezes cometemos erros atrás de erros atrás de erros porque não aceitamos que o encanto terminou, que ficou só terra queimada, não temos já maneira de segurar

(Como um pássaro ferido nas mãos em concha)"

Rodrigo Guedes de Carvalho


quinta-feira, janeiro 14, 2010

Mágoa

"Há muito que os especialistas defendem que o tratamento do cancro está demasiado fragmentado e que para haver maior qualidade é necessária concentração. Nesse sentido, a Coordenação Nacional para as Doenças Oncológicas (CNDO) fez sair este mês um documento onde surgem os requisitos necessários para que uma unidade preste cuidados em oncologia. Um deles define como 500 o número mínimo de novos casos por ano para que um serviço se mantenha aberto."

(escrevinhado no público)

Racionalizem tudo o que quiserem.
Façam todas as avaliações de custos e relatórios de produtividade que quiserem.
Entrem em todas as rivalidades políticas e regionais que queiram.
Façam tiroteio de números o quanto tempo quiserem.

Mas saber que vai haver mais hipóteses de haverem pessoas a sofrer com uma doença que nos rouba quase toda a nossa dignidade e nos leva quase tudo menos os ossos...
Saber que há hipóteses de haverem ainda mais famílias e amigos dilacerados pelo sofrimento de quem amam e pelo eventual roubo dessa presença nas suas vidas...
Saber que o ser humano é apenas um número e nada mais...

Espero que a vossa consciência vos grite aos ouvidos até ao final das vossas vidas.

domingo, janeiro 10, 2010

Wild Thing


Lembrou-me todas as minhas brincadeiras de infância. Todas as aventuras imaginadas na minha cabeça que se passavam no espaço das quatro paredes do meu quarto. Lembrou-me as minhas correrias pelos corredores de casa, a fugir de monstros terríveis ou a perseguir extraterrestres não muito amigáveis com a minha arma de raios laser. Lembrou-me tudo aquilo que, de certa forma, tornou a minha infância tão feliz. E lembrou-me ainda como vivemos com o coração ao pé da boca, quando somos crianças. Como deixamos que as emoções nos invadam e nos deixemos inundar pela alegria, pela tristeza, pela revolta, pela solidão, pelo facto de sermos ainda pequenos e ninguém querer saber a nossa opinião. E, lá está, de como no fundo todos nós temos dentro de nós todos aqueles monstros, os bons e os menos bons. E de como podemos ser todos eles, sendo sempre nós próprios. Gostei, claro.

(Não é o melhor filme do Spike Jonze, mas mantém o nível de excelente criador de ideias cinematográficas.)


sexta-feira, janeiro 08, 2010

Liberdade

Fez esta semana dois anos que escrevi esta pequena estória.

Hoje é dia de arco-íris. Sem chuva. Sem hipocrisia.


quinta-feira, janeiro 07, 2010

"Queima o sangue um fogo de desejo,
De desejo a alma é ferida,
Dá-me os teus lábios: o teu beijo
É o meu vinho e minha mirra.
Reclina para mim a cabeça
Ternamente, faz que eu durma
Sereno até que sopre um dia alegre
E se dissipe a névoa nocturna."

Aleksandr Púchkin


segunda-feira, janeiro 04, 2010

Saudades de Nova Iorque

"Depois do Natal trazemos as almas mais magoadas, é certo. Gostamos muito uns dos outros, mas com as devidas distâncias de espaço e de tempo. Depois de uma ou duas horas de contenção, por uma acumulação lenta insuspeita, abre-se uma fissura, uma brecha por onde explode a violência. As famílias são centros de alta fricção acumulada onde pessoas se obrigam a conviver muito para além da própria vontade, lugares atafulhados com miragens e fantasmas."

Pedro Paixão


(na verdade, sei demasiado bem do que ele está a falar. mas este Natal, não foi assim, foi feito de oásis que me saciaram e de afectos que afastaram o frio da noite. não me importava de para o ano ter um Natal como este. fica, desde já, na lista de compras para o ano que agora começa.)