A Quadrilha não está propriamente dentro das minhas audições regulares, apesar de gostar de música tradicional portuguesa e música celta (as principais influências deste grupo). Mas assim que li a notícia, tenho que admitir que a minha memória recuou no tempo até meados de 1987. Foi nessa altura que recebi da mãe do Sebastião (Sebastião Antunes é o vocalista e compositor da Quadrilha) um single de vinil com quatro músicas de quatro bandas diferentes. Uma delas acabaria por ser a primeira banda do Sebastião, os Peace Makers, onde ele começava a mostrar um pouco do que seria a temática que rondaria as suas composições até hoje. A música chamava-se Hiroshima. Lembro-me do Sebastião desde a minha infância. Morávamos na mesma rua, à distância de duas portas. A mãe dele conheceu-me praticamente desde que nasci. O Sebastião foi a primeira pessoa invisual (quase a 100%) que alguma vez conheci. Fazia-me muita confusão, na minha mente ainda precoce. Porque andava aquele rapaz sempre com óculos meio estranhos, quase escuros? E aquele andar esquisito, de quem não sabe que terreno pisa? E, no entanto, nunca me lembro de alguma vez ter visto o Sebastião com aquela bengala, a dar toques no chão. Penso, não tenho a certeza, que o Sebastião não nasceu invisual e que, por isso, havia percursos que conhecia literalmente de olhos fechados. Mas, pensando agora com mais uns quantos anos em cima, o que será que passava pela sua mente, sabendo que nunca mais podia ver o mundo que, em parte, conhecia? Nunca mais poder ver um pôr-do-sol, nunca mais poder ver o mar, nunca mais poder ver as caras daqueles que amamos, nunca poder ver as nuvens a passarem por cima de nós... Se calhar, por causa disso, e apesar da nossa tenra idade, nunca nos passou pela cabeça, de mim e dos meus amigos daquela rua, gozar ou fazer pouco do Sebastião. Gozávamos com o dono da mercearia da esquina, que gaguejava a torto e a direito. Gozávamos com a vizinha de idade que andava sempre aos berros para não jogarmos à bola tão perto dos carros. Mas com o Sebastião, não. Porquê fazer isso? Víamo-lo a chegar e gritávamos a saudá-lo e ele acenava e sorria, um sorriso tão sincero que parecia por um instante que nos conseguia ver, a jogar e a brincar. Lembro-me também de um concerto, no jardim da avenida, no tempo em que as famílias ainda passeavam no jardim até às tantas da noite, no Verão. Lembro-me que havia muitos ranchos populares à mistura, acho que algum fado, mas na verdade só me recordo bem que estávamos todos à espera que a Quadrilha subisse ao palco, para podermos cantar e saltar e dançar com as músicas do Sebastião. E que grande concerto foi esse. Gosto de pensar que a cegueira fez do Sebastião a pessoa simpática e calma que eu conheci. Que o facto de não conseguir ver, fez com que ele fosse capaz de escrever poemas e músicas que agradaram a tanta gente. Assim, só posso desejar boa sorte para o novo album e um abraço deste ex-vizinho para ti, Sebastião.
"Ai caramba
Aquilo é que havia de ser, caramba
Palavra de honra
Só me arrependia do que não fizesse"