domingo, setembro 28, 2008

Domingo Bom...


"Sofrer fez-me diferente..."



Soturno

adjectivo
1. taciturno, tristonho
2. pouco dado à convivência social
3. sombrio, carregado
4. lúgubre, medonho
(De Saturno, astr., pela suposta influência deste planeta no espírito das pessoas que nasciam sob o seu signo, pelo cast. soturno, «taciturno; melancólico»)

(in Infopédia)

O ataque

Hoje é domingo, mas na passada sexta-feira, por volta das sete e treze da manhã, deu-se o culminar da grande conspiração da estantaria sobre mim. Pódios, prateleiras, pleias, picôs, bastiadores e barras de esforço viram todos uma aberta para finalmente conseguirem o seu ataque final sobre mim. E foi assim, meio na escuridão, que uma prateleira decidiu ir contra o meu escalpe (pouco) cabeludo, fazendo uma ferida jeitosa. Não senti o sangue senão alguns minutos depois e aí já era tarde para impedir o mesmo de jorrar. Aguentei-me estoicamente até tudo estar terminado. Depois fui para casa, limpei e desinfectei a ferida, deitei-me e comecei a pensar se não estaria na altura de não me aproximar mais do covil da malvada estantaria.

E sim, Célia, este texto não é ficção.

quarta-feira, setembro 24, 2008

A sensação de inquietude voltou a aparecer hoje. Por uns breves segundos, tive a confirmação que os meus piores receios tinham todo o fundamento. Que tudo tinha sido arduamente real. Que os olhos que eu não conseguia deixar de ver na minha mente e que não me tinham permitido dormir um sono que não fosse desadormecido eram mesmo verdadeiros. E que decidiram aparecer de novo, no meio da multidão, no meio de uma jornada de trabalho intensa, como chamas infernais a emergirem do tumulto do quotidiano. E o medo tomou conta de mim. Não fugi, fiquei apenas imóvel, em antecipação, esperando a tormenta de ter de me confrontar de novo com aquela mancha de solidão inóspita, materializada no corpo dela. Não sei bem o que me passou pela mente, mas por um infímo momento senti uma voz a clamar dentro de mim, a pedir-me que não fugisse, que enfrentasse aquele temor, aquela premonição de um futuro possível. Que não sucumbisse à fraqueza de não ser capaz de perceber o que tudo aquilo significava. E foi nesse infímo momento que decidi, ainda que imobilizado por um pânico desavergonhado, que não fugiria, que ouviria os seus desabafos, os seus anseios e ténues esperanças, as suas mágoas e o seu coração a sangrar, e, acima de tudo, os seus olhos suplicantes, a humilharem-se por um pouco de condição humana, de um toque, de uma palavra. Assim estava eu, vacilante, à espera do momento em que teria mais uma vez aquele ser destroçado diante de mim, despida de qualquer réstia de ilusão de uma felicidade que estava afastada há muito. Mas o momento nunca veio. Tão depressa como a vi, assim ela desapareceu no meio da turba de pessoas, ela mais a sua sombra negra de solidão. E lentamente o bater do meu coração começou a abrandar, ao aperceber-se que os meus pesadelos mais sombrios iriam continuar escondidos num qualquer recanto mais obscuro da minha consciência.

E entretanto comecei a pensar que iria ter mais uma longa noite pela frente. A confrontar os demónios que iriam mais uma vez emergir do azul dos olhos dela.

terça-feira, setembro 23, 2008

Ficções reais

Se eventualmente gostaram disto (como eu gostei),


então recomendo a leitura destas inspiradas palavras, por alguém que é sempre uma óptima inspiração. Bem hajas.

Islandices... (VI)


Menos de 50 quilómetros por hora, perdi a conta das vezes que o ponteiro descia até perto 20, 15 quilómetros por hora. E mesmo assim, graças às bonitas gravilhas islandesas, até parece que estamos a participar numa prova de todo-o-terreno...

segunda-feira, setembro 22, 2008

Hoje vi-me frente a frente com a solidão. A solidão a jorrar dos olhos vazios de alguém que se sente perdida como poucas pessoas. Alguém que num ápice parece ter descido ao mais profundo inferno emocional que se possa imaginar. Alguém que se sente só, abandonada, desprezada, escorraçada de uma vida que julgava que iria durar para sempre. Alguém que precisa desesperadamente de algo ou alguém que preencha aquele buraco que surgiu no lugar onde o seu coração existia. Alguém que estendeu, por breves instantes, os braços na minha direcção, na esperança de que eu a pudesse compreender, ajudar, enfim, torná-la menos só. E eu o que fiz? Exceptuando algumas palavras de circunstância? Fugi. Virei-lhe as costas. Educadamente, é certo, mas deixei-a isolada no seu mundo destroçado. E porquê? Porque ao olhar aqueles olhos tristes, sem expressão e sem brilho, pareceu-me ver um espelho. Um espelho do que pode ser o meu futuro, se persistir em ser teimoso e não abdicar de mim próprio. Sim, é isso mesmo. Se não me abandonar à mercê das outras pessoas e me deixar levar pela marés que por vezes evito, é aquilo mesmo que me espera, nos olhos daquela pessoa a quem virei as costas naquele corredor. E não sei se estou preparado para enfrentá-la, a silenciosa solidão que nos cerca e nos estrangula lenta e terminalmente. Na verdade, apenas tive consciência do medo um par de horas mais tarde, quando a voltei de novo a ver, à deriva no jardim, alheada ao resto do mundo que pouca se importa com o destino dela. Não consegui fazer outra coisa que não fechar os olhos, imaginar que nada daquilo se tinha passado, que eu não tinha nada a ver com aquela pessoa, que a solidão nunca me irá atormentar daquela forma. Não, tudo não passou de um sonho amargo.

Ainda hoje não sei se foi realidade ou não. E sinto receio por haver essa dúvida.

terça-feira, setembro 16, 2008

Como Eu Não Possuo

Olho em volta de mim. Todos possuem -
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minh'alma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo pra ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse - ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...

Castrado d'alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
- Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...

Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhá-la nua,
Bebê-la em espasmos d'harmonia e cor!...

Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim - ó ânsia! - eu a teria...

Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo d'êxtases dourados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante...

De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo.

Mário de Sá-Carneiro

segunda-feira, setembro 01, 2008