quarta-feira, outubro 29, 2008

Cavalos nocturnos

"Lisboa ruiu. As ruas, as praças, os jardins, as fontes. O rio e o mar abriram brechas, engoliram barcos e navios, levaram o horizonte, o pôr-do-sol, as casas da marginal, os restaurantes, as esplanadas, as praias. Depois o mar e o rio desapareceram, o mundo rodou sobre si próprio e sumiu no espaço.
Um minuto depois de perder-te."

Teolinda Gersão

quarta-feira, outubro 22, 2008

movimento

"movimento de alma
silêncio, emoção,
de doçura meia,
essa tua palma
sobre a minha mão
o que tem que eu leia?

para lá da floresta
onde as coisas são
sem minha licença,
mais linear que esta
confusa razão
da tua presença

não há outro sim
que não tem dizer
e explica melhor?
qualquer coisa assim
como um tempo sem fim
como um espaço sem tempo"

Mário Cesariny

terça-feira, outubro 21, 2008

Dia bom

[Obrigado, amigo, pelas palavras oferecidas e por tudo o resto, que não é pouco.]

"(Para o Espaço Cinzento ou não, como queiras. Pareceu-me que andas sem inspiração, e assim aproveitei a minha rara de hoje. Apeteceu-me.)

Lá está ele outra vez: o famigerado espelho retrovisor. Todas as vezes que entras no carro, seja o teu ou não, olhas para ele. Tornou-se um hábito rotineiro, obrigatório, sempre com um pequeno toque para o ajustar ou para ajustar o que vês nele. Ou o que queres ver nele. Tornou-se no teu companheiro de viagem, qual caixinha mágica, teu televisor privado. Mas o que vês não é o teu reflexo, é o teu passado, é o teu futuro, são os teus medos e as tuas alegrias. E vais percorrendo quilómetros assim, fazendo sol ou não. Segues o teu caminho, segues as estradas que foram toldadas à tua frente.

Hoje chove intensamente. Apesar de teres as escovas dianteiras e traseiras a desviar a água dos teus vidros o mais que podem, não consegues ver nada em direcção alguma. Parece que há uma opaca cortina cinzenta que te envolve. No entanto, o teu espelho preferido mostra-te hoje o filme da tua vida. Nele já viste o que se passou à tua volta: o passageiro que ameaçava a condutora, o marido com o cano da pistola virado ao peito da esposa, a senhora que se maquilhava num carro vizinho, as saudades que tinhas dos teus mais próximos, os amigos que se casaram e se divorciaram. Hoje, é a tua vida que está em exibição nesse cinema só teu.

Esse filme de hoje é especial. Não te mostra o que conheces de ti, mostra-te vários filmes ao mesmo tempo, todos sobrepostos, todos paralelos e que começam no preciso momento em que ligas a ignição do carro. Mostra-te os vários desafios que tens pela frente, as possíveis alternativas para cada um deles, as muitas estradas que podes escolher para chegares ao teu destino. Mas não te mostra o destino final e é isso que te preocupa.

O visionamento deixa-te obcecado e esqueces-te que estás ao volante e em poder de uma arma mortífera que não podes negligenciar. Estás desligado da realidade, só vês o teu filme. Nesse instante, uma forte rajada de vento e um trovão abanam o veículo. Até o rádio emudeceu. Acordas do sonho acordado e encostas o carro para te poderes acalmar, para diminuir a adrenalina que corre nas tuas veias. O teu coração bate forte, o sangue corre-te pelas veias a uma velocidade que parece impossível.

Se estivesse sol, se não tivesses esses horários violentos a cumprir, sabias que te poderias refugiar no teu bar-esplanada favorito à beira mar, fizesse calor ou não, desde que houvesse um raio de sol para te aquecer a alma e um bom livro para te alimentar a imaginação. Se. Mas não, continuava a chover intensamente e pelos vidros não vias nada por muito que te esforçasses. Só o espelho continuava a exibir o teu filme. Assim ficaste ao longo de minutos, horas, ou mesmo dias? Não sabias se já estavas em condições de continuar a tua viagem ou se deverias continuar na berma, à espera, em quase eterna pausa para continuar. Apenas sentias esses suores frios provocados pelos calafrios e ansiedades.

Enquanto estás parado, não consegues tirar o olhar do espelho. Os actores principais já entraram em muitos castings, já os conheces de outros filmes antigos. Mas a meada da história parece não te fazer sentido algum: partes da história já metem sangue, gumes afiados de canivetes de barbeiro, lava intensa a correr pelos sucalcos do teu país e que o transformam em terra eternamente queimada e infértil, lutas fúteis com torrentes de água gélida muitas vezes mais fortes que tu. Que sentido faz isto tudo? Ainda por cima não tens comando para desligar o teu televisor privado, quanto mais para fazer rewind ou fast forward. O cinto de segurança prende-te ao assento, a tempestade aprisiona-te no teu veículo. É sufocante e já nem sabes o que podes sentir. Mas ris-te no teu silêncio.

Bruscamente acordas do transe, todo transpirado e ofegante pelo que acabas de viver. Afinal foi apenas e só um sonho. Um sonho que pareceu realidade, um sonho que durou toda a noite, uma noite que pareceu infindável. Mas nada é eterno, sabes isso. E olhas pela janela. Está um sol radiante, um azul de céu que faz lembrar o mar calmo, uma brisa fresca que convida a passear à beira mar. E decides pegar no teu carro, sem medos de filmes, sem medos de espelhos, e vais para o teu bar-esplanada favorito com um livro na mão e boa música no ar. E sorris.

Sorris, porque reconheces ao longe, neste dia especial, o The Happy Birthday Song contido na misteriosa produção de ovos do André Pássaro. Haja muitos mais dias assim."





quarta-feira, outubro 15, 2008

Monstros Invisíveis

"Só quando tivermos devorado este planeta é que Deus nos dará outro. Vamos ser mais recordados por aquilo que destruímos do que por aquilo que criámos."

Chuck Palahniuk

domingo, outubro 12, 2008

Janela


Os pilares da casa ficam (quase) sempre escondidos, e a fachada está a precisar de ser pintada.

quinta-feira, outubro 09, 2008

Lightning strikes twice

"E nesse momento, sem o poder controlar, e sem perceber muito bem porquê, derramou uma pequena lágrima."

Há dias e dias. E depois acabam por ser semanas.
E o sol já se pôs. E os candeeiros de rua já estão acesos.
Na esquina há dois vultos. E o fumo de um cigarro aceso a contragosto.
Um antibiótico seria uma boa ideia. Se a farmácia estivesse de serviço.
As teclas estão gastas. Muito mais gastas do que se pensava.
Paciência...

quarta-feira, outubro 08, 2008

Estrada

Os olhos começavam a fechar-se-lhe. Era hábito na viagem de volta a casa. O cansaço do dia que findava em conjunto com a cadência quase sonâmbula da carruagem não deixavam grande espaço de manobra para outra coisa que não fosse o lento descer das pálpebras. O livro estava a milímetros de lhe fugir das mãos. A música que lhe saía dos auscultadores também o ajudava a embalar, muito antes da hora, para um sono que não pedia licença para se anunciar. Ele sentia as pessoas à sua volta, mas ao mesmo tempo parecia que estava sozinho no comboio, alheado do resto do mundo, ou mesmo excluído por ele. Seria por isso que quase conseguia ouvir apenas a sua música e nada mais à sua volta? Tirou os auscultadores e apenas ouvia o troar mecânico característico do comboio. Nada mais. Nem conversas entre amigos, nem juras de amor entre enamorados, nem os risos e gritos de crianças. Toda a carruagem emersa num silêncio empedrenido e insuportavelmente barulhento. Voltou a colocar os seus tampões musicais. Ao menos a música continuava a fazer-lhe companhia. Do lado de fora do vidro via o sol a esconder-se, enquanto a sua cor vermelha ia colorindo os vidros sujos do comboio. Lentamente, o disco vermelho ia escondendo-se por trás dos prédios que se faziam sempre acompanhar ao longo da linha férrea. Por um infímo momento, lembrou-se doutros comboios, doutras paisagens, doutros tempos mais inocentes e mais alegres. O sono tinha fugido de si, mas não se sentia mais desperto por causa disso. Chegou ao seu destino. As portas abriram-se e as pessoas saíram para o frio de fim de tarde que se abatia sobre a estação. Aquela luz ensanguentada do sol tornava-se ainda mais angustiante com a companhia da poeira que se libertava a espaços das obras de remodelação da estação. Indiferentes ao vai e vém de gente, os homens das obras continuavam a martelar, a cavar, e a soldar. Seguiu caminho, rua acima, não tinha coragem para se meter noutro transporte público só para não ter de andar umas quantas centenas de metros sempre a subir. Para mais, gostava daquele vento de princípio de outono que vinha beijar a sua face. E o cansaço também não o deixava andar muito depressa. Por isso ia ouvindo as suas músicas e olhava o pequeno mundo que o rodeava, cada vez mais repleto de pessoas, cada vez mais claustrofóbico e labiríntico, graças aos prédios corbusianos que cresciam como cogumelos. Já quase não sentia os pés quando chegou ao cimo da subida. O sol dava os últimos sinais de vida naquele dia. E quando estava a chegar à sua porta, ouviu quase imperceptivelmente, a acompanhar a música dos auscultadores, alguém chamar por si. Voltou-se e à frente do sol apenas conseguiu distinguir uma silhueta. Uma silhueta que o fez esquecer de tudo e de todos os que tinham povoado mais aquele dia rotineiro da sua vida. E enquanto esboçava um sorriso na direcção da cada vez mais próxima silhueta, pelos seus tímpanos a dentro entrou aquele som reconfortante que tantas vezes tinha ouvido nos braços da sua silhueta. E nesse momento, sem o poder controlar, e sem perceber muito bem porquê, derramou uma pequena lágrima. Uma pequena lágrima que ainda corria pelo seu rosto quando a sentiu finalmente de volta ao seu corpo.