(ou de como umas quantas palavras minhas e uma pequena troca de galhardetes, podem estimular a inspiração de alguém que muito prezo e dar origem a uma prosa tão bonita de tanta amargura e dor que a envolve. Obrigado, é o que posso escrever. Transcreve-se de seguida.)
Peindre ou faire l’amour
O comboio partira há pouco da estação e no entanto, era como se aquela semana se traduzisse em horas, apenas. Sabia que tinha de fugir para algum sítio e o Porto, onde vivia uma tia a quem prometia sempre no Natal uma visita, parecera-lhe o melhor lugar possível. Seria o último lugar onde ele a procuraria. Não tinha sido uma boa ideia. Desesperadamente, queria que ele a procurasse, que a encontrasse. Tantos os momentos que havia estado na Foz, à noite, naquela semana, com o telemóvel por companhia e que patética a sua figura. à terceira noite desistiu; o orgulho levara-lhe a melhor. Ela não haveria de ceder, não podia sucumbir à saudade de alguém que lhe fazia tanto mal. Além disso, tinha a certeza que ele não a entendia, que não a acompanhava nos sonhos, nas coisas que ela gostava de fazer, em nada, que não a amava. Não tanto como ela desejava, não como ela o amava. Agora tinha a certeza. A revolta tinha-se apoderado de si naquela tarde, ao perceber o quão estúpida era, e como aquela relação não a levava a lado algum. Apenas tinha tido tempo de avisar a chefe que se iria ausentar por uma semana, e num ápice, ir a casa fazer a mala. Aquela tarde, os gritos que dara em casa, os gritos que os vizinhos certamente teriam ouvido, os gritos de desamor, de uma pessoa mal amada, de uma pessoa amarga, os gritos de alguém que tinha chegado ao fim da linha, os gritos que esperavam obter uma resposta... por fim, os gritos que ficariam sem resposta. Os homens nunca entendem, os homens nunca sabem. As mulheres gritam porque estão assustadas, porque têm medo, os gritos servem apenas para encher o vazio, a frustração e o frio desse medo. O silêncio de um homem é a única coisa que deixa uma mulher que grita, assustada, sem rede. O grito que ela dá é o salto para o precipício, um precipício sem rede. Ele não lhe deu a rede, a resposta, o eco, nada. Silêncio. Resignação. Então falou, ela falou, falou, falou, falou até não poder mais, disse tudo o que lhe pareceram as melhores razões para justificar aquela saída, aquele fim. Para preencher o vazio, o frio, o medo, o silêncio. Atrás de si fechou a porta convicta de que assim era melhor.
O orgulho deu lugar a um alívio imediato, semelhante a um analgésico fraco para uma dor demasiado forte, que deu lugar a uma tristeza, intercalada com raiva, novamente acessos de orgulho e por fim, a saudade. Naquela semana, sentira acima de tudo, saudade. Saudade do cheiro dele, da voz, das palavras, até dos silêncios. Não lhe apetecia nada retornar à vida do costume. Com ele, era uma incógnita, nunca se entendiam, nada parecia bater certo; não tinham discussões, é certo, mas havia algo nele que lhe indicava que não era nada daquilo. Porque estaria ele com ela? Porquê todo aquele tempo? Agora, sem ele, tudo o que haviam vivido parecia afinal ter algum sentido. Ou seria a saudade a falar mais alto?
Estava cansada, não dormira nada naqueles dias no Porto. Detestava a cidade, as pessoas, tudo lhe parecia escuro e sujo. A tia era uma chata do caraças, sempre preocupada, sempre aquela pronúncia, nem tinha conseguido guardar segredo e o pai ligara logo na segunda noite a perguntar se estava tudo bem. "Claro que está tudo bem". Eram apenas uns dias para tirar umas fotografias para um novo trabalho. Isso ao menos correra bem, ao menos isso! A cidade tinha uma luz diferente de Lisboa, mais difícil de editar e trabalhar, mas até isso aproveitou para o estado de espírito menos "saudável".
Agora, estava ali, naquele comboio, era já noite, passava Coimbra B, e estava frio, lá fora, dentro do comboio, dentro de si, sentia o frio e decidira fumar um cigarro para "aquecer". Maldito vício. Três tentativas para deixar e nada. Longe iam os tempos em que fumava Marlboro; agora com o preço do tabaco sempre a aumentar, limitava-se a fumar do mais barato que havia no mercado, ou daquele que a prima lhe mandava dos Açores, da tabacaria Estrela. Era horrível, mas a menos de dois euros, sabia-lhe divinalmente. Tirou o maço do bolso do casaco de malha preto que ele lhe tinha oferecido no passado dia dos namorados. Irónico, não? "Dia dos namorados... foda-se que sou mesmo estúpida, caramba!"
Olhou lá para fora e enquanto tirava o isqueiro para acender o cigarro que tinha nos lábios, caíu-lhe algo mais do bolso. Era um bilhete de cinema amachucado. Ela fazia colecção de toda a porcaria que um dia pudesse recordar e os bilhetes de cinema não eram excepção. Tudo o que fosse concerto ou filme ou peça de teatro ou um pedaço de papel com anotações especiais, pensamentos ou fotografias íam parar ao álbum. Aquele, não teria sido um muito melhor filme para recordar, de entre tantos que ela gostava de ir ver ao King, talvez por isso decidiu não o incluir no álbum. Ele tinha adormecido durante a exibição da película francesa e pela conversa posterior, achava que aquilo tinha algo a ver com uma família. Ela riu-se, como se ria sempre e achou melhor não dar importância ao caso. Estavam algo desencontrados, talvez um dia se encontrassem a sério.
Agora, naquele comboio, pareciam-lhe mais distantes que nunca. Ela não a procurara, todas as razões lhe pareceram plausíveis, concluíu. O fumo do cigarro tranquilizava-a. Soprava o fumo, travava novamente o fumo dentro de si, prendia-o durante segundos, aquilo era mesmo bom. Um rapaz olhava-a fixamente, do seu lugar, na carruagem, enquanto ela fumava de pé, junto à porta. Lembrou-se de Manoel de Oliveira, aquilo parecia um filme do Manoel de Oliveira. Fechou os olhos, ela era a figura principal, a luz estava impecável, princípio de noite semi-fria de Outubro, e aquele rapaz bem poderia ser a sua nova conquista. Talvez fosse de Lisboa, talvez fosse o seu velho/novo/de sempre/Grande Amor que tinha, também ele, o seu coração despedaçado por alguma bimba que havia despachado no Porto, um amor impossível, separados pela distância, e agora conhecia-a a ela, uma romântica incurável, apaixonada, e haviam de ver todos os concertos e ler todos os livros e ele de certeza iria dar-lhe a conhecer um mundo novo e... estava a fazer um filme. Instantaneamente, o rapaz pareceu-lhe adivinhar o pensamento desesperado e desviou o olhar. Era um mundo cruel, aquele, e ela não queria conhecer mais ninguém. Isso dava muito trabalho e não estava disposta a isso: encontros, saídas, engates, jantares, conversas, estava demasiado cansada. Na verdade, ela não queria mais ninguém. Só queria que aquela dor parasse, que o sono chegasse, que as lágrimas parassem e deixasse de fazer a conversa mental consigo mesma que as coisas podiam ter outra solução. Não tinham. Estava tudo irremediavelmente perdido. Acabado.
Ligou o iPod e deixou que o modo aleatório lhe desse uma pista sobre que caminho havia de tomar. Não poderia ter sido mais angustiante o sentimento que surgiu quando ouviu os primeiros acordes da guitarrinha ironicamente alegre do Bill...A Man Needs A Woman Or A Man To Be A Man...
in Psicologias da Treta