quarta-feira, março 28, 2007

Telefonema

23:10

Ela fez-lhe um telefonema e ele, quase sem se aperceber, ficou a pensar. A pensar nas palavras dela como a acção que tinha despoletado as reacções (leia-se sentimentos) pelas quais estava agora a passar. A voz dela tinha-lhe parecido distante, como se estivessem em pólos opostos do planeta, quando na verdade havia apenas meia dúzia de quilómetros entre eles. Porquê a distância? Porque ela parecia mesmo preocupada com ele ou porque ele estava numa tal diferença de frequência que nem sequer sabia o que lhe responder? Ele nunca tinha sido bom em articular o que se passava na sua cabeça, e ela nunca tivera problemas em o deixar embasbacado com a sua frontalidade. Na boca dela, uma simples pergunta como se ele estava bem, era o suficiente para o deixar desarmado, pois sabia que o alcance dessa pergunta ia muito mais longe. Já devia estar habituado. Mas não, não era assim que acontecia. Ela sabia-o bem. E era exactamente por isso que nunca desistia, mesmo quando do outro lado da linha apenas se ouviam monossílabos incoerentes e envergonhados. Ela sentia-o diferente e ele não sabia se realmente o estava. Ela dizia-lhe o quanto ele significava para ela. Ele dizia idem idem aspas aspas, enquanto levava as mãos à cabeça e não acreditava o quanto idiota aquilo lhe tinha soado. Ela esperava por ele. Ele tinha dúvidas atrás de dúvidas e a única certeza que se firmava era o quanto gostava de ouvi-la. Nunca se cansava de a ouvir, mesmo quando ela quase exasperava por uma resposta dele. "Estás bem?". "Acho que sim". Ela perguntava-lhe pelo presente. Ele fugia, qual animal encurralado, e respondia-lhe com lembranças do passado. A voz dela procurava, ansiava por ir ao encontro das emoções dele, saber o porquê, o porquê da ausência de chama, o porquê da fuga sem destino. E do lado dele, apenas uma certeza, no meio de tantas imagens desfocadas. A indiferença. O caminho de um único sentido. Um dia igual ao outro igual a outro ainda. Bem espremido, a voz dele tinha conseguido articular aquilo. Do mal o menos. Ela sentia saudades dele. Ele, com o receio usual, achava que as coisas não estavam assim tão más. Ele propôs um encontro, um café, um copo, algo. Ela concordou mas também avisou que não era uma questão de cobrança. Ela disse-lhe que era algo que ia muito mais ao âmago deles os dois do que ele queria acreditar. Ele também sentia isso mas guardou-o para si. Ela despediu-se. Ele também. Ambos estavam cansados. Não das suas vozes ao telefone, mas sim dos seus dias. Dias sem fim.

00:44

... the answer is within you.


6 comentários:

PenaBranca disse...

Ora, estás a ver? É por este e outros que eu repito o que já disse: quando!?

Anónimo disse...

confesso que este teu 'post' tocou fundo.
não é preciso dizer muito, para dizer tudo - alguém me ensinou. fazendo uso desta máxima portátil, diria exactamente que 'the answer is in ourselves' (e no nosso mundo de fragilidades, dúvidas, angústias, nevoeiros mais ou menos espessos, fantasmas projectados, etc. um longo etc.).
e porque é que os nossos dias indiferentes se revelam quase sempre de noite ?
e porque é que

Anónimo disse...

e porque é que o meu comentário anterior ficou a meio ? enfim, as minhas desculpas..

dizia..

e porque é que temos mundos tão diferentes encerrados dentro de nós, aquela sensação de que há uma fina linha da vida entre estados de alma (e de coração e etc, etc) tão diversos. um equilíbrio instável e negro - um muro que temos que percorrer.

como dizer, um abraço 'sintonizado'.

gi.

Nuno Guronsan disse...

Quando o quê, amigo? Já devias saber que tenho uma imaginação muito fértil... :) Ou então estou mesmo a precisar de férias...

Gi, as tuas palavras são quase um bálsamo para este espaço cinzento que por vezes não sabe bem como interpretar o que vai pela alma do gajo que por aqui escreve. Obrigado e abraço na mesma sintonia.

José Raposo disse...

O movimento New Age aterrou por aqui...

Nuno Guronsan disse...

Não, ainda não me dedico a ouvir discos com as vozes dos golfinhos ou com o barulho das ondas...