terça-feira, dezembro 19, 2006

O anjo

Miguel era um anjo irrequieto. Andava sempre de um lado para o outro do Paraíso, nunca conseguindo estar parado por muito tempo num único sítio. Na verdade, isso era mentira. Havia um sítio onde Miguel passava horas e horas da sua eternidade. Sempre na ânsia de um dia poder passar para o lado de lá. As portas do Paraíso exerciam um poder enorme sobre ele. Cada vez que S. Pedro se virava, lá estava ele, de volta dos portões, apenas para olhar para a enorme chave que pendia da cintura de Pedro. Os seus olhos suplicavam por aquilo que Pedro já há muito sabia. Miguel queria descer à Terra por uma última vez. Já pouco se recordava do que por lá tinha vivido mas algo na sua alma agitava-o para lá voltar. As recusas para conceder tal pedido duravam já meia eternidade e até S. Pedro começava a ter alguma compaixão pelo pedido de Miguel, mas que havia ele de fazer? O abrir das portas a um anjo não dependia dele. Até que um dia, em que Miguel se encontrava em cima de uma nuvem, quase coberto pelas suas asas, S. Pedro se aproximou dele e lhe deu a tão esperada notícia: em virtude daquele ser um tempo santo e de festa, Miguel tinha autorização para passar as portas do Paraíso e descer por uma última vez à Terra. Miguel quase não acreditava nos seus ouvidos. Voou e voou de alegria e contentamento. Se não fosse o respeito que tinha ao santo, teria-o abraçado e rodopiado no ar com ele. Num acto solene, S. Pedro rodou a chave na fechadura e abriu as portas do Paraíso para Miguel. Este respirou fundo, abriu as suas asas e voou através das portas divinas, mergulhando no seio das nuvens. Depois de muito tempo a voar, Miguel começou a ver umas pequeninas luzes ao fundo da escuridão. Aquelas luzes lembravam-lhe algo mas não sabia bem o quê, uma memória escondida nalgum recanto da sua alma. As luzes começaram a ficar mais nítidas, a cidade estava agora por baixo dele, começava a ver os rostos das pessoas. Ninguém o via, claro, era uma das condições para ele se ter ausentado do Paraíso. Aquela cidade tinha sido, em tempos, a sua cidade. Agora era-lhe estranha, estava repleta de luzes de Natal, estava mudada. As primeiras impressões de alegria que tinha tido quando chegara começavam a afastar-se, ele próprio começava a aperceber-se que a sua casa era agora outra. Voando por entre os prédios, via poucas caras com reflexos de felicidade. A maior parte mostrava-se fechada, apressada, a correr de um lado para o outro, sem tempo, sem a chama da alegria nos olhos. Miguel chorava. Chorava porque aquela cidade que lhe tinha dado momentos de alegria (mesmo que não os recordasse como deve de ser) estava diferente, para pior. Mas foi nesse momento, quando limpava as lágrimas, que viu algo que lhe chamou a atenção. Um anjo. Um anjo feito de luz. Mas não era um anjo qualquer. Aquele anjo era-lhe familiar. Miguel aproximou-se daquela luz. Não, não era um espelho, mas... Sim, eram as formas de Miguel que ali estavam, representadas naquela decoração, naquela praça. Aquelas asas. Eram as suas. Aquele manto. Era o seu. Miguel estava confuso. E depois reparou naquela pessoa em pé, diante do outro Miguel, o de luz. Foi descendo devagarinho até se encontrar ao pé da face daquela pessoa. E nesse momento sentiu um arrepio. Mas os anjos não sofrem arrepios, pois não? Mas Miguel tinha-o sentido. Aquela cara. Aqueles olhos. Aquela expressão triste. Miguel conhecia aquela pessoa. Beatriz. Sim, era esse o nome dela. Mas não conseguia lembrar-se de mais nada. Quem seria ela? E porque é que Miguel a reconhecia? Não o sabia, por mais que tentasse procurar no seu âmago. E já não tinha tempo para o procurar. Ao longe ouvia já a voz de S. Pedro, dizendo-lhe que era tempo de voltar. Miguel começou a elevar-se, cada vez mais alto. Ao longe ainda conseguia distinguir as figuras de Beatriz e do anjo de luz, qual delas a mais intrigante. Sentia-se em paz. Era tempo de voltar às nuvens.

7 comentários:

Sofia Viseu disse...

anjos... e claro, as asas do desejo. gostei muito das tuas asas

Anónimo disse...

Juro que tentei ler o teu post mas esse nome causa-me alguma aversão, se me puderes mandar o texto mas trocando o nome do anjo por, sei lá Winston, Lionaldo, Antunes... Agradeço ;)
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Micas disse...

Gostei deste conto de Natal de anjos e desejos...
Aproveito para desejar um muito Feliz Natal (que sei que vai ser ;) a ti e todos os teus e que 2007 te traga tudo o que mais desejares.
Fico na expectativa de como será o meu, o primeiro sem o meu pai...
Beijos

Anónimo disse...

Amigo Guronsan: neste espaço vivo e colorido (ainda que "cinzento"), que no último ano nos permitiu vencer um pouco melhor a distância, deixo-te os votos de Boas Festas!
Que o teu Natal seja tão bom quanto algumas linhas aqui deixam antever, cheio de felicidade, paz e afecto, e que o Novo Ano te traga a alegria, a força e a esperança para todos os caminhos que tens pela frente!
Um abraço grande!

Sea disse...

Ok... também não há renas por estes lados :D
Deixo-te um beijo grande com todos aqueles desejos para estes dias.
Um Feliz Natal :)

Desambientado disse...

Um conto de Natal sabe sempre muito bem.
Votos de um Feliz Natal.

APC disse...

Vim pela coincidência, pois também eu tenho um conto de Natal que se chama "O Anjo" (mas publicado lá mais atrás).
Não sei se o anjos sentem arrepios. Sei que não sou anja e que o senti. Gostei, Nuno! E ocorreu-me: que nos possamos despedir em paz do que seja, mas que nos não levem o que não estamos prontos para perder.
Feliz Novo Ano que se avizinha!