quinta-feira, novembro 09, 2006

Sóbrio

Desde que me lembrava que aqueles jantares de empresa eram sempre assim. A desculpa costumava estar relacionada com o libertar da tensão acumulada de meses e meses de árduo trabalho e acabava por ser uma forma de melhorar o espírito de equipa e os laços entre todos os trabalhadores da empresa. Nobre propósitos, é certo, mas o que é que acabava por acontecer, ano após ano? Demasiadas bebidas alcoólicas à borla. A maior parte das pessoas deixava-se levar nas ondas enebriantes do que quer que contivesse uma pontinha de alcoól. Até podiam estar levemente envergonhadas no início e irem pedido garrafinhas de água, mas quando se chegava à sobremesa poucas pessoas sóbrias ainda restavam. Eu? Apesar de constatar todos estes factos em todos os anos que passei naquela empresa, não era nenhuma nobre excepção e também eu me deixava perder por entre copos de vinho tinto e whiskies escandalosamente maus de tão novos que eram. Por isso, quando foi confirmado que naquele ano o jantar seria num restaurante brasileiro, e apesar da racionalidade pensar em "picanha", a primeira palavra que começou a aflorar nos lábios de cada um foi "caipirinha". Na verdade, o plural deveria ter sido utilizado logo desde o início. O jantar foi bom. Apesar de nesse ano ter havido um corropio de re-modelações, re-organizações, re-estruturações e mais não sei quantas res-qualquer coisa, e não haver muita disposição para sequer pensar em trabalho, o jantar correu muito bem, apesar de agora não me lembrar que vinho fantástico era aquele que tinha bebido. O pior foi quando começou a música, naturalmente acompanhada da infame bebida brasileira que acaba em diminuitivo, como se isso desvalorizasse o conteúdo alcoólico. Foram muitas, demasiadas. As inibições começaram a cair por terra. Antigos desejos reprimidos surgiram à superfície. Eu tentei manter-me num canto, despercebido, mas não o consegui. Quando dei por mim já me encontrava também a dançar, ou melhor, a rodopiar no meio de tantas pessoas que eram do meu quotidiano mas que ali me pareciam perfeitos desconhecidos. Já a entrar na madrugada houve quem sugerisse ir a um bar que ficava ali perto. Felizmente era perto, podíamos andar um pouco, talvez assim a sobriedade nos pudesse cobrir um pouco a todos. Sol de pouca dura. Assim que entrámos no bar alguém me passou um whisky para a mão. Tanto quanto me lembro foi o primeiro de muitos mas naquela noite só me ficaria a recordação daquele único copo. Mais música, mais dança, mais bebida. O bar era todo ocupado por nós. E foi aí que a vi. Sónia? ou seria Paula? Lembrava-me vagamente que trabalhava nos recursos humanos, juntamente com as outras três raparigas que dançavam com ela. Os olhos dela estavam fixos em mim e, provavelmente, os meus estariam fixos nos dela. Andámos na direcção um do outro e, pelos passos desajeitados, estavamos ambos bêbados. Demasiadamente bêbados. O som da música não permitia grandes conversas mas, mesmo que o permitisse, não me parece que estivéssemos interessados nisso. Não depois daquele beijo intenso no qual tínhamos mergulhado. Tenho a ligeira impressão que não passaria pelas nossas cabeças tal acto, não fosse o nosso sangue estar tão inebriado ao ponto de fazer os nossos lábios juntarem-se daquela maneira. Ainda abraçados um ao outro, começamos a dançar, e a rodopiar no meio dos nossos colegas de trabalho. Todos de cabeça perdida, intoxicados no centro daquele ritual que se repetia todos os anos. Dançámos, bebemos e beijámo-nos uma outra vez. E de repente, quando as nossas pernas já se sentiam fartas de nos sustentar, acabámos os dois no chão, estendidos ao comprido no chão daquele bar. E pelo meio do alcool e de uma dor que nascia palpitante no meu tornozelo, apenas consegui pensar nela. No dia em que tínhamos casado. No dia em que beijei a mulher mais bonita do mundo. No dia em que jurámos que iríamos pertencer um ao outro até ao fim dos nossos dias. No dia mais feliz da minha vida. Senti-me asfixiar. Precisava de ar. Os meus colegas tinham-me devolvido à minha posição vertical e eu aproveitei para cambalear até à rua. As dores no tornozelo eram agora alucinantes. Assim que senti o ar frio da noite, senti-me mal disposto e logo de seguida dobrei-me encostado à parede e vomitei. Precisava de alguns minutos para me recompôr e por isso sentei-me no chão empedrado da rua. Só nessa altura reparei que nas ruas já se encontravam as decorações de Natal acesas. As luzes feriam-me os olhos mas eu não queria fechar os olhos. Sabia que se fechasse os olhos me iria lembrar que já não estava com ela. Que já não partilhava a sua cama nem o seu corpo junto ao meu. Iria lembrar-me que o meu amor por ela tinha passado de um fogo para uma leve chama, que mesmo assim ainda ardia, ainda que já separado dela. Sentia que a tristeza da separação começava a voltar a apoderar-se de mim. Tinham sido dois meses muito dificeis e muito longos. Não necessitava disso, não outra vez. Precisava mesmo era de uma bebida...

(Banda sonora e fonte de inspiração aqui)

4 comentários:

Anónimo disse...

Há músicas que me levam imediatamente para algum sítio, imagino situações, crio o meu pequeno filme.

Acontece-me o contrário quando leio alguns dos teus posts, ainda não tinha chegado à parte da "banda sonora" e já tinha encontrado a minha.

**

Ps Death in Vegas "Dirge" :)

Nuno Guronsan disse...

Tendo em conta as sugestões de "bandas sonoras" que por aqui tens deixado, não se pode dizer que eu seja uma má influência... ;)

inBluesY disse...

fiquei a sorrir.

Nuno Guronsan disse...

Eu quando acabei de escrever não sabia bem se havia de sorrir ou chorar... Mas se pus um sorriso na tua cara, fico também a sorrir.

Beijos.