terça-feira, dezembro 01, 2009

Moldura

Estava sossegado. Absorvido pelo meu livro e pelo café fumegante que tinha acabado de chegar à mesa. O resto do mundo não existia. Só eu, o meu livro e aquele momento perdido nas palavras do Philip. Até que tu passaste na rua. Do outro lado do vidro do café, lá estavas tu, a passar quase em câmara lenta, nos braços de dois homens que te seguravam como se fosses a coisa mais preciosa de todo o mundo. Quase como se tivessem receio de te deixar cair e que te partisses em mil e um bocadinhos de frágil porcelana. Seguravam-te enquanto a tua pele recebia os poucos raios de sol que teimavam em escapar-se por entre as costumeiras nuvens cinzentas que por ali faziam a sua casa. A tua pele. Macia, quente, ardente com todo o teu interior. Quantas e quantas vezes me tinha deixado ficar assim, deitado junto ao teu corpo nu, só para sentir toda a tua pele? E os teus cabelos? Negros como as noites que partilhámos. Seria capaz de me afogar nesses teus cabelos negros se isso significasse ficar contigo para sempre. Mal se moviam com o vento, enquanto passavas do outro lado do vidro, nas mãos daqueles homens. Tinha saudades dos teus cabelos. Saudades de os ver soltos, longos, quase como se fosses abrir asas e voar pela janela do nosso quarto. E com as saudades dos teus cabelos, vêm todas as memórias que guardei do teu corpo. Os teus olhos. Os teus olhos profundos, sábios, de ascendência milenar, olhos que seriam capazes de desarmar os mais empedernidos homens à face da terra, olhos capazes de me levarem de boa vontade à mais desesperada das loucuras. E a perfeição dos teus seios? Sim, é verdade, admito-o, quantas e quantas vezes não fiquei eu hipnotizado, deslumbrado, alucinado com os teus seios? Nunca me cansei de lhes tocar, de os apertar, de os beijar, de me perder neles enquanto a noite era noite. E agora, aqui os torno a ver, de novo a passearem-se à minha frente, apenas com um vidro a separar-me deles, quase louco de raiva por ver as mãos daqueles homens tão perto deles. E quase viro a cara ao aperceber-me que essas mesmas mãos também estão tão próximas do teu sexo. O teu poderoso e inclemente sexo. Dominante, como todo o teu corpo, mas ainda mais radiante de tão suave na sua presença. Lembro-me de sentir o pequeno tufo de pelos à sua volta, o pequeno arbusto a servir como coroa às tuas pernas. Pernas intermináveis na sua beleza. Todas as recordações são demasiado dolorosas. Ainda não consigo pensar em ti sem sentir um aperto no peito, quanto mais ver-te assim, desfilando à minha frente, escarnecendo da minha dor.

Foram apenas dois segundos, enquanto passaste em frente ao vidro. Dois segundos que poderiam ter durado uma vida inteira. Ou assim parecia. E eu fiquei tão desnorteado com a tua presença que nem sequer me apercebi que aqueles homens apenas transportavam um dos teus quadros. Um dos teus muitos auto-retratos, espalhados por tantas e tantas partes desta cidade. E que dia após dia insistem em cruzar-se comigo, recordando-me a tua ausência da minha vida. Que insistem em dizer-me que já não estás aqui, que os meus dias estão incompletos, e que as minhas noites me envolvem com a solidão de quem já não tem amor na sua vida.

4 comentários:

Cate disse...

Se eu já estava curiosa com as citações que tinhas feito nos posts anteriores, um livro que te inspire a escrever este belo texto é certamente digno de atenção. Levaste-me ao café.

Beijos.

Nuno Guronsan disse...

Bom, pode ser que assim que acabe de o ler (por manifesta falta de tempo, não de interesse), o livro possa passear até algum canto obscuro. Que dizes?

E obrigado pelas tuas palavras.

Beijos.

A disse...

O PR deixa-te algum sentimento de angústia e solidão ou é impressão minha?

Nuno Guronsan disse...

É impressão minha.

O PR deixa-me sempre literariamente saciado. E, por vezes, inspirado.

Bjs