Saiu para a rua. Sentiu o ar cortante da manhã que ainda não é manhã porque a estrela que nos aquece ainda não tinha surgido no horizonte. Apertou contra si a camisola de lã que tinha recebido pelos anos, que a sua mãe tinha escolhido de propósito para ela. Não resultou, havia um pequeno sopro de ventania que ajudava o frio a penetrar os tecidos e que chegava até à sua pele. Decidiu fugir para dentro do carro. Entrou e pôs as mãos sobre o volante, quase numa súplica em busca de orientação. Não sabia para onde ir, só sabia que queria estar longe dali, num sítio onde ninguém se lembrasse de a procurar. Olhou para o espelho retrovisor. Ainda havia alguns vestígios de maquilhagem na sua face. Pequenos rios de tinta preta que atravessavam a sua cara. Por contraste, os seus olhos irradiavam vermelho, raios vermelhos de quem derramou demasiadas lágrimas. Pegou no lenço e tentou limpar os restos de maquilhagem que a desfiguravam. Arrancou. Já tinha destino. Já sabia para onde queria ir, onde queria estar. O carro deambulava pelas ruas, quase em piloto automático. Era muito cedo ainda para engarrafamentos, acidentes ou descontrolos psicológicos de pseudo-condutores, as ruas encontravam-se vazias à excepção do seu carro. Abriu um pouco o vidro. O vento fazia os seus cabelos dançarem de um lado para o outro, à medida que revia todos os acontecimentos na sua cabeça. Perguntava-se como tinha deixado as coisas chegarem aquele ponto, como podia ela ter continuado aquela farsa quando já sabia perfeitamente que tudo tinha chegado a um ponto sem retorno. Tinha-se enganado a ela própria. Ela, que sempre tinha sido o supra-sumo da objectividade, tinha-se deixado enredar nas próprias teias daquilo que condenava nos outros. A raiva fê-la pisar ainda mais o acelerador, quase perdendo o controlo do carro. Não, ainda não era a altura. O céu ainda agora principiava a clarear, mas a noite ainda não se tinha refugiado por completo. Não sabia bem o que sentir, se raiva, se tristeza, se desespero, ou se todas aquelas amostras de emoções não passavam de um camuflar do total estado de indiferença em que parecia estar envolvida. Ainda podia voltar atrás? Sim, era muito simples fazer meia-volta mas, ao mesmo tempo, algo lhe dizia que não, já era tarde demais, os dados já estavam lançados, na sua mente a decisão já estava tomada, "já estás conformada". Parou o carro. Tinha chegado. Tantas e tantas vezes tinha ali estado para ver o nascer do sol. De certa forma, aquele local era-lhe mais familiar do que todos os outros por onde tinha passado na sua vida. Ali tinha visto o nascer do sol com os seus pais. Ali tinha visto o nascer do sol com o seu primeiro namorado. Ali tinha visto o nascer do sol com o seu primeiro verdadeiro amor. Ali tinha visto o nascer do sol com o seu marido. Ali tinha visto o nascer do sol com o seu filho. Não mais veria o nascer do sol ali, naquele pedaço de terra cuja poeira sempre a acompanhou, agarrada a ela, quase a recordá-la que seria ali que tudo terminaria. Saiu do carro. O vento estava forte naquele dia. O sol começava a surgir no horizonte que ela sempre contemplara com um misto de curiosidade e temor. Apenas permitiu que uma única lágrima lhe corresse pela face. E depois começou a caminhar. E caminhou até não ter mais chão para caminhar...
11 comentários:
hhhhhmmmmm, pobre rapariga que perdeu o norte e nao se soube pendurar ao que de mais nobre tem na vida, a sua propria vida?
E surge a pergunta quase tão infalível como o chão que lhe faltou: o que leva uma mãe/filha/mulher a cometer tamanha tragédia?
Ahhh, meu caro e bom amigo... isso é o primeiro capítulo!
Não me deixes sem resposta!...
Beijos
Ó amigo, tu que tens sempre uma música nos teus dias, toma lá uma banda sonora para o teu texto (embora não lhe falte nada, é só uma outra sintonia que julguei encontrar...): "Passos em volta", do Palma (in http://www.jorgepalma.web.pt/letra0808.htm)
(suspiro) and so it is... just like it was supposed to be...
naquele dia, aquela mulher, que já não era namorada, esposa ou mãe, mas apenas e só uma mulher, percebeu a inevitabilidade da sua jornada. percebeu que tudo teria de ser assim, e por isso assumiu a coragem de embarcar nesta viagem. e verteu uma única lágrima. a mesma lágrima que, levada pelo vento na sua queda, fica como supremo testemunho da liberdade que assegurou para si - para sempre.
E será que nós temos de compreender esses actos?
Só para ler os vossos comentários, já valeu a pena escrever aquelas palavras despegadas, cujo significado terá aquele que vocês lhe quiserem dar... Bem hajam.
Na naaaa....
Desculpa lá.... mas tu matas a mulher e nem dizes porquê?
Se para alguns a Mulher deixa de ser mãe, mulher, filha, etc e por isso vá de se largar a um precipício, eu acho que não é bem assim... há sempre razões demasiado fortes que nos prendem aqui.
Só quero saber porque raio "mataste" a mulher :D
Beijinhos ;)
Como uma boa canção, gostava de deixar a interpretação destas palavras ao critério de quem as lesse. Mas a verdade, A., é que já me pus a pensar no que estaria por detrás desta decisão...
Para breve, prometo...
When I fall asleep it could be forever
So I'll never fall asleep again
When I fall apart, put me back together
And my life will be complete
Timewatching - The Divine Comedy
Li este post depois do outro, percebi o seguimento com a frase do início, mas será q por mto q apeteça, vale a pena acabar de vez com a hipótese de se voltar a ver um pôr do sol com alguém especial? Será q vale a pena, ñ nos darmos a hipótese de ser feliz de novo?
Acho q ñ!
(Até pq ñ há pessoas q valham tudo isso...)
O texto é uma miscelânea de memórias minhas, acontecimentos reais e uma grande dose de ficção. As interpretações ficam à vossa responsabilidade.
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