domingo, junho 22, 2008

Terra de gelo - VIII


Como alguém me "disse" recentemente, está na altura de pegar outra vez na mochila. E na mala, e no saco-cama, e na máquina fotográfica, e em tantas outras coisas...

Não sei o que me espera, mas tenho esperança que seja mais uma daquelas experiências que vão ficar para o resto da vida, ou numa versão mais familiar, para contar ao netos...

E há a curiosidade, basicamente, de ver o local que inspira obras de arte tão sublimes e étereas como as que vou deixar aqui a pairar durante esta próxima semana... Até já.

terça-feira, junho 17, 2008

Vidro

Ainda sentia dores. Mesmo com o monstruário de remédios que povoavam a sua mesa de cabeceira, continuava a sentir a dor a latejar nas suas pernas. E isso era mais doloroso que ter de deslocar-se em cadeira de rodas pela casa. Quando se tinha sentado nela pela primeira vez, tinha sentido um arrepio pela espinha acima. Bem sabia que não estava incapacitado e que aquilo era apenas um recurso para que a sua reabilitação fosse mais rápida e as suas pernas não fizessem esforços desnecessários, mas mesmo assim era horrível aquela sensação de não poder andar por si próprio. E nas poucas horas de sono que conseguia ter, a mesma pergunta pairava sobre si, nos seus sonhos. Tinha valido a pena? Salvar a vida de uma pessoa que lhe era completamente estranha, sob pena de ter arriscado a sua própria integridade física? Felizmente o embate dos veículos não tinha sido muito forte, caso contrário sabia ele lá o que lhe podia ter acontecido. E tudo por causa da sua obssessão. Do seu pequeno pecado de observar os outros no seu espelho retrovisor. De ler as conversas alheias nos lábios de indivíduos desconhecidos. De se esgueirar pelas frechas indevidas que os outros deixavam inadvertidamente abertas para o recesso das suas vidas. E tudo através de um mero espelho retrovisor. A sua técnica era já tão evoluída que as conversas daqueles que seguiam em automóveis atrás do seu não tinham segredos guardados. E já não era só em engarrafamentos que podia dar largas ao seu conhecimento quase viciante das vidas alheias. Não, agora mesmo a alguma distância os seus olhos liam todas as palavras proferidas nas vidas que o seguiam, indiferentes à sua presença. Só assim se explicava como se tinha apercebido que o passageiro ameaçava a condutora. Que o marido tinha o cano da pistola virado para o peito da sua esposa. Que aquele casal se iria tornar na próxima ilustração para mais um caso de violência passional nas páginas do matutino do dia seguinte. Que apenas ele, naquele infímo momento, podia tomar uma decisão que a pudesse salvar, aquela pobre mulher que mal conseguia ver a estrada através da torrente de lágrimas que a vacilava. E assim, quebrando uma regra que ele tinha instituído para ele próprio, tinha agido. Travara o carro com tamanha raiva que o outro, onde seguia o casal, não teve outro remédio senão embater com força na sua traseira. Calculou que a mulher se salvasse no abraço ao airbag. Calculou que o homem não tivesse essa sorte ou se a tivesse que a polícia já ali estivesse para o prender. Calculou bem, a mulher estava salva e o homem estava morto, estatelado no vidro frontal. Calculou mal em relação a si próprio, outro carro tinha aparecido à sua frente e com ele tinha chocado. As pernas tiveram o embate correspondente e agora ali estava ele, vagueando pela casa com as pernas imóveis nos suportes da cadeira de rodas. A mulher nunca soube a verdade, tal como a polícia. Para todos os efeitos, apenas mais um acidente em plena IC, no regresso a casa. E como estava confinado à sua casa, e como continuava a ansiar por outras vidas que não a sua, passou a fazer do seu computador o seu automóvel e da internet a sua estrada e de blogues, sites e quejandos o seu vidro retrovisor privado. O princípio mantinha-se, observar sem ser observado. Textos, fotos, videos. Tudo servia para ler as vidas dos outros, de todos os outros. A sua vida continuava a ser demasiado insuportável para ser vivida. Até que chegou àquelas palavras, àquele texto. Um texto escrito no dia 2 de Dezembro de 2007. A pessoa assinava com um pseudónimo que podia não ter qualquer ligação à realidade. Leu-o, releu, voltou a ler mais uma e outra vez. Os seus olhos não queriam acreditar, a sua mente tentava reconfortá-lo dizendo-lhe que era a mistura de antibióticos e anti-inflamatórios que lhe estava a pregar uma partida. Mas não, estava mesmo ali à sua frente, preto no branco. Alguém sabia quem ele era. Alguém sabia o que ele fazia. Alguém tinha escrito para o resto do mundo ler o que era a vida dele. Mas quem, perguntava-se ele. Quem poderia saber o seu segredo? Havia comentários de outras pessoas, elogiando a verve literária do autor, assentando que se tratava de um excelente momento de ficção. Mas do autor nenhuma resposta. Nada que fizesse eco de que aquilo era mesmo ficção. Ele sabia. Por todos os pequeníssimos detalhes, o autor sabia quem ele era. Mas o inverso não existia. Ele desconhecia quem teria escrito tudo aquilo. E não havia forma de o saber. Percorreu o site de ponta a ponta mas o autor escondia-se muito bem, fosse por fotos desfocadas, fosse por referências quase obscuras aos sítios por onde passava. Sentiu-se enlouquecer. Via vultos onde nada havia. Tentou adormecer. Os pesadelos foram mais que muitos. Sempre a fugir de uma perseguição que não sabia de onde vinha ou porque motivo. E no entanto... No entanto, nas palavras que o desconhecido tinha deixado, não havia propriamente um sentimento de repulsa, condenação ou humilhação. Pelo contrário, havia um aviso. Um aviso para ele viver a sua própria vida e não a dos outros. Para ele seguir em frente e deixar para trás aquilo que se passava atrás de si. E quando chegou a esta constatação, apercebeu-se que já não queria saber quem tinha escrito as palavras que via à sua frente. Já não era preciso. Sabia que a partir daquele momento a sua vida já não seria a mesma. Que uma nova estrada começava naquele preciso momento. E que os outros iriam passar a fazer parte dela, mas desta vez ao seu lado, no lugar de passageiros comuns da sua viagem.

Terra de gelo - VII




(Via Cabalas, com um agradecimento ao Raio)

domingo, junho 15, 2008

Terra de gelo - VI

"Hákarl - Iceland's most famous stomach churner. Hákarl is Greenland shark, an animal so inedible that it has to rot away underground for six months before humans can even digest it. Most foreigners find the stench (a cross between ammonia and week-old roadkill) too much to bear, but it actually tastes better than it smells... It's the aftertaste that really hurts. A shot of brennivín (schnapps) is traditionally administered as an antidote."

Terra de gelo - V

"Iceland is roughly equal in size to England, but with only 300,000 people (as opposed to England's 49 million), scattered around its coast. Beyond the sliver of habitable land along its shores, half the country is covered by the inhospitable desert and another 15% is taken up by icecaps. Add on some lava fields and a few sandar (glacial sand plains), sprinkle generously with geysers, fumaroles and hot springs, and you've pretty much covered the island."

Souvenires

Mushaboom
I Feel It All

Inside and Out


A qualidade da imagem e do som são sofríveis, para não dizer uma autêntica cagada. Mas são as minhas lembranças para quem esteve na Aula Magna na última quarta-feira. Encarem os videos como os imãns manhosos ou os cinzeiros pirosos que se compram no estrangeiro para oferecer a amigos e familiares, para lhes dizer que enquanto ficávamos maravilhados com tudo o que víamos, nos lembrámos de vocês todos, os que não puderam estar connosco. E assim continuamos mais um bocadinho nas nuvens...

quinta-feira, junho 12, 2008

Ondas Sonoras - XXXIII


Foi bom descansar. Descansar dos bloqueios que paralisam meio mundo português e ao mesmo tempo nos tornam um país mais ecológico e menos consumista. Descansar de uma histeria pseudo-patriótica em torno de algo que não passa de um jogo. Descansar de um primeiro-ministro que teima em nos dar mais e mais dores de cabeça. Descansar de um presidente da república com propensões para uma linguagem de teor ariano. Descansar de tudo e tudo e tudo.

E entrar no mundo mágico de Feist. E que mundo bonito seria se pudéssemos viver apenas nele.

Um mundo com sombras que se movem lentamente para que possamos apreciar a sua beleza frágil e delicada. Um mundo onde apenas começamos por ver a sombra da voz que nos rodeia, metade tímida metade fascinante. Um mundo onde ela tão depressa nos mostra a sua face melancólica e calma, como a seguir nos pede para nos levantarmos e cantarmos com ela ("como se estivéssemos num jogo de futebol") e batermos palmas ("mas ao menos deixem-nos tocar os primeiros acordes" :), e nos mostra o seu lado energético, a agarrar as cordas da guitarra eléctrica e a bater com os sapatos de salto alto no chão, fazendo ecoar esse som por toda a aula magna. E ela falou tanto connosco, nós que estávamos rendidos ainda antes de ela começar a nos deixar de boca aberta, e ainda antes de libertar as nossas cordas vocais apenas para deleite da sua cunhada. Menina Elisabete Lisboa Moniz, faça o favor de agradecer à menina Leslie! Tal como nos agradecemos, do fundo da nossa alma, por nos ter permitido entrar num mundo tão mágico e tão belo que não dava vontade de regressar ao mundo real...


segunda-feira, junho 09, 2008

Melting pot

Tantas cores, tantas nacionalidades, tantos idiomas, tantos risos, tantos olhos brilhantes, e a festa sempre a andar, a correr, todos unidos para festejarmos um único acontecimento, uma única alegria que nos unia a todos. Foi bonito ver aquele microcosmos, ver tanta mistura de culturas, e melhor que tudo, ver como comunicámos sem ser preciso falar muito. Quase que dava vontade de ter um mundo igual àquelas horas que passámos todos juntos. Se ao menos dependesse de todas aquelas almas que ali dançavam e cantavam juntas... Obrigados, meus queridos amigos, foi bom matar saudades, rever os viajantes de longe e relembrar memórias tão boas e que quase parecem pertencer a uma vida passada, distante, mas guardada como poucas.

sexta-feira, junho 06, 2008

Re-selecção

Para quem achava que esta coisa tinha alguma coisa de irónico, é favor dirigirem as vossas córneas ópticas até esta pequena jóia de escrita perfeitamente livre de ironias. Está tudo lá explicado e muito sinceramente eu não seria capaz de fazer melhor nem que o tentasse ou que o tivesse tentado. Um forte aplauso para o Francisco José Viegas por nos explicar a psique dos nossos (tristes) dias.

Letra após letra

Como é que uma pessoa se apodera do coração de outrém?

Mais importante ainda, como é que o mantém por um tempo parecido com a eternidade?

Aceitam-se sugestões.


segunda-feira, junho 02, 2008

Do Vinil - V





(Não-autobiográfico)

Hoje comprei um inimigo.

Normalmente não vou nessa cantiga das promoções e dos descontos em cartão e dos preços sempre baixos. Normalmente sei o que quero, vou direito aos corredores que me interessam, carrego o carrinho de compras e sigo directamente para a caixa (self-service, se houver). Rápido, simples e eficiente, que o tempo deve ser gasto em melhores coisas que andar às compras de bens de primeira necessidade. E assim sempre fico com mais tempo para deambular entre colunas de som e plasmas da Bang & Olufsen. Mas naquele dia não.

Naquele dia achei algo que ainda não tinha, ou pelo menos assim o pensava. Um inimigo. E estava tão barato que era quase dado. Fim de stock, assim me explicaram. Tinham de se desfazer daqueles inimigos antes do próximo inventário fiscal. Ou seja, não era um problema de validades, como a certa altura receei. A validade ainda era longa, pois ser inimigo visceral de alguém não consumia muitos segmentos cerebrais, apenas aqueles mais básicos, que já possuímos desde o tempo em que andávamos ainda curvados e cobertos de pelos desgrenhados. E o preço era tão atractivo que não resisti.

Levei-o e o meu inimigo era tão barato que nem sequer puxei do cartão de crédito, uma vez que ainda tinha alguns trocos da última ida ao casino. A operadora de caixa agradeceu a minha preferência e avisou-me para guardar o recibo comprovativo, e experimentar todos os aspectos do meu inimigo nos trinta dias seguintes. Depois disso, o hipermercado comprometia-se a trocar o meu inimigo caso o mesmo se revelasse insatisfatório. Agradeci, coloquei o meu novo inimigo debaixo do braço e dirigi-me ao parque de estacionamento. Aí demorei algum tempo a encontrar o meu automóvel e o meu inimigo, acabado de comprar, criticou-me pelo meu sentido de desorientação, falta de consciência ambiental, despesismo capitalista e pelo insuportável odor corporal que de mim emanava. Com um sorriso agradeci-lhe os seus primeiros esforços, mas salientei que, como meu inimigo pessoal, esperava muito mais dele. Todos aqueles insultos seriam, certamente, certeiros mas pareciam-me ao mesmo tempo insuficientes para a descarga de fúria cega que sentia que existia dentro de mim e que apenas um inimigo sem escrúpulos conseguiria libertar.

E dito isto, eu e o meu inimigo sentámo-nos no carro e dirigimo-nos para casa, sob um céu imensamente azul e um sol que começava a descer sobre o horizonte. E, inspirado por tal cenário, o meu inimigo disse que eu lhe metia nojo e não passava de um bardamerdas. Eu sorri e pensei que este inimigo, mesmo a preço de saldo, tinha futuro, e fiquei com a clara certeza que seria um investimento bastante rentável a longo prazo. O meu inimigo pessoal seria a inveja de toda as pessoas no escritório e a minha esposa iria encher-se de compaixão para com a minha pessoa, oferecendo-se todas as noites só para que eu não pensasse no meu inimigo, aquele ser que me odiava com todas as forças do seu ser. Sim, não havia dúvidas, comprar um inimigo tinha sido a melhor escolha da minha lista de compras. Muito melhor que um tamagochi...

domingo, junho 01, 2008

Folga

Era para informar que acabei de confirmar com todos os canais de televisão nacionais a transmissão, em directo e em exclusivo da minha partida para o trabalho, amanhã por volta das sete e pouco. Garanti igualmente a presença de uma multidão de três ou quatro pessoas para se despedirem de mim. Não haverá bandeiras, dada a sua banalidade, mas as três ou quatro pessoas garantiram-me que irão agitar as suas gravatas no ar. Da minha parte posso assegurar que estarei de óculos escuros e respectivo walkman (o i-pod é muito complicado para mim). Também procurarei responder às expectativas daqueles que querem observar a minha pessoa no interior do veículo, de modo que farei pequenas filmagens do mesmo com o meu telemóvel de antepenúltima geração. A minha chegada ao trabalho irá ocorrer passados quinze minutos, o que dará tempo mais que suficiente para um spot promocional dos meus patrocinadores, Galp, BP e Repsol, que, como acto de patriotismo, promoteram não aumentar os preços dos combustíveis durante a duração da minha viagem. À chegada ao trabalho, espero ser recebido em braços e de forma gloriosa pelos dois guarda-nocturnos que acabam o seu turno mais ou menos por essa hora. E sim, estarão devidamente embriagados, pela minha presença e pelo garrafão de cinco litros que lhes deixei ontem como forma de agradecimento pela sua devoção quase fraternal. E finalmente, porque sou uma pessoa que não gosta de se expôr, não haverá filmagens minhas de bastiadores em trajes menores, no interior do meu poliban. Essas apenas estarão disponíveis para os sócios do meu site (www.naosoujogadordefutebolcomotalnaoexisto.pt). E no Youtube, claro, com comentários sussurrados pelo senhor Artur Albarran. E o meu automóvel é movido a vontade de chegar a horas. E só isso.

Valha-me nossa senhora da tv cabo.

Por um dia


A memória é uma coisa estranha. Seria de esperar que os meus quinze (micro)segundos de fama tivessem um pouco mais de destaque, mas a coisa acabou por ficar nos recessos do meu néo-cortex, perdido entre o límbico e o reptiliano. Mas hoje acabei por me lembrar, apenas porque alguém chegou lá primeiro do que eu. Para mim, o que acabou por ficar foi, para além de ter tido a oportunidade de ajudar uma causa bastante válida, a sensação de que ficou esclarecida a minha "imagem" perante algumas pesssoas do meu quotidiano. E que no fundo não recorrer a máscaras ou a distorções da realidade continua a ser ponto assente. Ainda que depois acabe por ficar "entalado" nestas situações. É um risco mas há que não virar a cara e seguir em frente.