sábado, abril 19, 2008

Cordon bleu

As panelas já estão ao lume. Os vapores começam a inundar todos os recantos da cozinha. Os aromas flutuam já no ar, invadindo sem permissão as nossas narinas. Eu continuo a temperar a carne enquanto tu continuas a cortar sem piedade os legumes alinhados na tábua. Penso que concordarás comigo que estes momentos sempre foram os nossos preferidos. Nem o sexo, nem as viagens, nem os beijos roubados na altura em que erámos namorados durante a ditadura. Nada disso. As nossas almas apenas se encontram realmente quando estamos aqui, entre estas quatro paredes, rodeados de comidas, condimentos, molhos, pratos, panelas, copos nunca vazios de vinho, aqui, esquecidos do mundo e vivendo através das nossas experiências gastronómicas. Um molho disto, uma pitada daquilo, precisa de mais, uma colher de sopa daquele líquido, está no ponto, não mexas mais, precisa de mais água, troca de lugar comigo, não te esqueças de virar aquilo, tudo isto é o nosso verdadeiro vocabulário de amor, aquilo que nos une mais que outra coisa qualquer. Se a nossa vida ao menos se resumisse a isto, se não tivéssemos que viver fora da nossa cozinha, nesse mundo perfeito poderíamos ser realmente felizes. Assim, limitamo-nos a viver a nossa felicidade pelo tempo exclusivo de uma refeição diária, fora de horas e que nos deixa exaustos de prazer culinário. E no fim de tudo, quando tento apenas beijar-te para te agradecer por mais um magnifício repasto a quatro mãos, tu desvias a cara, certa de que eu não vou tornar a cair no mesmo erro de mostrar tais emoções dentro da nossa cozinha.

2 comentários:

Clepsydra disse...

Santuário de sentidos... a cozinha. Belo cenário!

licopódio disse...

Nunca na cozinha, por certo.

Gostei do que li, vi e ouvi por aqui.