quarta-feira, março 03, 2010

Afastei-me rapidamente da esplanada. Ou melhor, tentava afastar-me rapidamente mas sem mostrar a minha ansiedade para sair daquele sítio. Não o podia mostrar, pois sabia que os olhos dele ainda estavam nas minhas costas, ainda estavam em mim. Não tinha conseguido aguentar mais. Pensei que conseguia mas não era verdade. Tinha sido obrigada a dar uma desculpa para não ficar ali nem mais um minuto. “Desculpa não poder ficar mais tempo, mas tenho de ir ter com os meus pais. Prometi-lhes que hoje iríamos almoçar juntos, e como ainda tenho de atravessar a ponte... Desculpa.” “Não faz mal, a sério. Eu vou ficar aqui mais um bocado. Espero que em breve possas um dia destes ir jantar lá a casa.” “Claro que sim. Quando quiseres.” Palavras de circunstância. Palavras ocas de sentido. Não fazia questão absolutamente nenhuma de ir a casa dele. Nunca aguentaria estar à mesma mesa que ele e a mulher dele. Não agora, não agora que eu sabia o que sentia por ele. Não conseguia, não sou assim tão forte. Só estar ali, naquela esplanada com ele, tinha sido uma prova insuperável. E quando o vi a chegar pensei que ia ser possível, que ia esconder o que realmente sentia e que iria continuar a ser a amiga que sempre fui para ele. Que ele não ia perceber nunca. Estava com melhor aspecto do que da última vez que o tinha visto, mas mesmo assim notava-se que ainda não tinha recuperado completamente. “Estás bem? Não pareces muito bem.” “Não dormi muito bem esta noite. Demasiadas coisas na cabeça, quase não preguei olho.” “A tua mãe?” “Também. Eu sei que já passaram duas semanas, mas de cada vez que fecho os olhos, parece que estou outra vez no cemitério. Ainda não me habituei à ausência...” “É normal, acho eu. Não estamos feitos para lidar bem com a morte, qualquer tipo de morte. Temos demasiada consciência para isso. Demasiados neurónios. Que parece que nunca dormem.” “Achas mesmo isso?” “Acho. Já tive a minha conta de funerais para perceber que não sei o que fazer perante a morte de alguém. Seja alguém tão próximo como a tua mãe, ou seja um familiar de um amigo de outro amigo. A forma como a dor me afecta é diferente, claro, mas não deixa de haver uma dor, uma fragilidade que me atinge e que fica comigo nos dias seguintes.” “Não penso nela sempre, durante todo o dia. Mas nas alturas em que sinto a falta dela, a dor que sinto não deve ser muito diferente de alguém a apunhalar-me no coração. Parece que perco todas as forças e só me apetece fugir, desaparecer. Sinto-me só.” “Tens o teu filho, tens a tua mulher. Tens de pensar neles.” A minha voz fica diferente quando lhe digo isto. Parece quase falha, rouca. Tento tossir para disfarçar. Tiro o maço de cigarros da minha mala. “Eu sei. E é só por eles que não me deixo ir abaixo. Também é por isso que tirei uns dias, para estar com eles. Para estar com o meu filho. Sabes, ele sente muito a falta da avó, e isso nota-se em pequenas coisas que ele diz ou faz durante o dia. Mas ao mesmo tempo tem uma força de vontade como, provavelmente, eu nunca tive. Puxa por mim, arrasta-me para todo o lado, fartamo-nos de fazer coisas juntos. Acho que me tornei o melhor amigo do meu filho.” “Isso é bom. Quer dizer, não acho mal. Se calhar há muitos pais que gostariam de ter essa proximidade com os filhos e não o conseguem.” “Ele tem os amigos dele na escola, claro. Mas com a morte da minha mãe, acho que ele se sentiu na obrigação, não, sentiu que devia «cuidar» de mim. Sentiu que eu precisava dele, para deixar a dor para trás.” “Ele tem um bom coração. E como todos os miudos de hoje, já é avançado para a idade. Já tem muito mais conhecimento guardado do que nós tínhamos com a idade dele.” “É a minha alegria, a minha felicidade.” “E a tua esposa?” Assim que o digo, puxo imediatamente pelo cigarro, quase o fumando de um só fôlego. “Está bem. Continua cheia de trabalho. Amanhã está outra vez de partida para o estrangeiro. Vai estar quase duas semanas fora. Deve ser por isso que a sinto distante. Durante a semana quase não temos tempo para falar e quando chega o fim-de-semana é o cabo dos trabalhos para a arrancar de casa. Eu quase que desisto. O nosso filho é que ainda consegue persuadi-la, de outro modo não viria connosco.” “O trabalho dela não é fácil. Muitas responsabilidades. É complicado. Imagino que esteja a passar por uma fase mais ocupada. Vais ver que daqui a uns tempos vais «tê-la» de volta.” “És capaz de ter razão. Pelo menos também espero que esta fase passe depressa.” Quem é que disse que as cartas de amor eram ridículas? As palavras que eu acabei de dizer é que são ridículas, idiotas. Porquê? Porque é que eu tinha de ficar assim? Porque é que eu não podia limitar-me a ser uma amiga, nada mais que uma amiga? Porque é que agora eu não conseguia estar aqui, à frente dele e pensar que sou apenas uma amiga de quem ele gosta como amiga? Porque é que me ponho a fazer filmes, e a sonhar acordada, e imaginar sequer que posso ficar com ele? Ele é casado, ele tem um filho, tem toda uma vida da qual eu apenas não passo de uma nota de rodapé. Sim, sou uma das amizades mais antigas que ele tem, e depois? Eu não quero ser amiga dele. Eu não quero ter estas conversas com ele numa esplanada algures na cidade. Eu não quero fingir nada. Eu quero acordar na mesma cama que ele. Eu quero sentir o calor do corpo dele junto do meu durante toda a noite. Eu quero que ele me beije. Eu quero que ele me abrace. Eu quero passear de mão dada com ele, junto ao mar. Eu quero a vida dele na minha vida. Eu quero... Eu já não sei o que quero. “E tu, como andas? Também pareces um pouco cansada.” “Nada de novo. E cansaço, só se for de demasiada vida social. Demasiadas saídas. Já não estou habituada.” “Eu já não sei o que é isso. Tens saído à noite? Para onde?” “Os sítios do costume. Já não tenho paciência para novos poisos. Os mesmos restaurantes, os mesmos bares. Tudo igual.” “E tens saído com quem?” “Amigas do escritório. Jantares tardios e copos até demasiado tarde.” “E novidades amorosas, há? Já há algum tempo que não te vejo com alguém.” “Não, nada. Acho que estou em vias de me tornar celibatária.” “Pois claro que sim.” “A sério. Estou farta de desilusões. Farta de aturar pessoas que não sabem o que querem. Olha, se calhar estou farta de amar.” “Espero que não. Ainda gostava de te ver com alguém que te mereça.” “Pois. Também não me importava. Mas acho que teremos de esperar sentados, os dois.” “Nunca se sabe. Acho que não deves desistir.” “Não, claro que não. Já sabes que isto é só da boca pra fora.” Não podemos parar com esta conversa? Se soubesses já te tinhas calado. Por favor cala-te. Não sabes como me está a custar aqui, impassível enquanto dizes essas coisas. Já não aguento, a sério que não. Preciso de sair daqui. Preciso de respirar longe de ti. Apago o último cigarro. Ponho os óculos de sol. “Desculpa não poder ficar mais tempo, mas tenho de ir ter com os meus pais.”



2 comentários:

PenaBranca disse...

há história. publicável.
ou
há história? filme?

Nuno Guronsan disse...

Há aquilo que conseguires interpretar por ti próprio. :)