Aquela era a sua parede. A parede onde envergava os seus troféus. Nada que se parecesse com uma sala de caça, daquelas que se lembrava de ver sempre que ia em alguma visita de estudo a um antigo palácio. Aliás, costumava ter pesadelos com esse tipo de salas. Como se a qualquer momento aquele javali ou aquele outro veado fossem ganhar vida e persegui-la raivosamente, como se tivesse sido ela a disparar a bala que para sempre os tinha plantado naquela parede. Sentia um pequeno arrepio só de recordar esses pesadelos. Não, a sua parede era muito menos dolorosa para os respectivos troféus. Afinal de contas, só tinham perdido os seus chapéus. Nada de mais na verdade. Talvez ainda hoje os procurassem, desconhecendo o seu verdadeiro destino. Isto se ainda se lembrassem dela. Bom, alguns lembravam-se de certeza, aqueles em que o desvio do seu chapéu só tinha ocorrido depois de alguns meses ou anos, e não a seguir uma noite de suor e sexo. Como o chapéu do seu guia, durante uma viagem pela savana africana. Depois de cinco dias e cinco noites de convívio, com muitas fotografias de animais e paisagens, em que ele tentava meter conversa a todo o custo, tentando saber tudo o que havia para saber sobre aquela turista fotógrafa de outro continente, após esses dias e noites, e chegada a última noite que iria passar naquela terra tão estranha e tão maravilhosa, deixou-se abandonar aos encantos do seu guia, deixando-lhe a memória de uma noite de desejos e múltiplas posições e o ar quente da savana a entrar pelo quarto adentro, enquanto ela se saía do quarto antes do sol nascer, levando consigo o chapéu do seu guia engatatão. Será que ele sabia que o seu chapéu se encontrava ali, numa parede de uma casa no meio da cidade mais ocidental da europa? Talvez. O antigo dono do chapéu de côco sabia de certeza absoluta que era ali que o mesmo estava. Tinham sido dez meses a partilhar a cama e os lençois com aquele actor de teatro inglês, numa casa perto de St James Park. Dez meses que se foram passando lentamente, ela a fotografar os meandros do nevoeiro, ele a representar peça atrás de peça num pequeno teatro num beco londrino, personagem atrás de personagem, ela sentada sempre na plateia, imaginando com que personagem iria ela dormir nessa noite, se o rei lear se o polícia destroçado pela vida se o cavalheiro inglês de chapéu de côco do século passado, imaginando-se ela também actriz envergando as roupas dele enquanto ele a olhava maravilhado, em pelo, deitado na cama. E assim se passaram os dez meses, e assim concluiram que não iriam ter um final feliz, e assim acabou aquele chapéu de côco na sua parede. Mas havia mais. O chapéu do professor de inglês da faculdade. O chapéu de palhinha do colega madeirense do último ano do doutoramento. O chapéu do seu primeiro marido, que acabou por lho tirar da mão na altura em que se despediam e já depois de terem assinado os papéis que punham um ponto final em cinco de anos de casamento malfadado. E ela pensava que ainda havia muito espaço naquela parede. Muito, demasiado espaço. Especialmente se considerarmos que o seu actual marido não usava chapéu e nem tão pouco compreendia o porquê daquela parede. Talvez que se o sol continuasse a brilhar por aqueles dias, ela lhe oferecesse um boné daqueles com pala, esse ele até provavelmente o usasse. E afinal de contas, ela ficaria com a casa. E a parede, mais os seus adornos de uma vida, continuaria a ser sua.
2 comentários:
:)
brilhante.
Como é que dizia o Vasco Santana?
Chapéus há muitos...
Suponho porém que esse tipo de perspectiva só pode ser mesmo pessoal e nunca partilhado, sob pena de quem faz tal tipo de colecções descobrir-se ela(e) própria(o) objecto de uma colecção ou exposição taxidérmica, de parede, fotográfica ou o que seja, similar...
Não te parece, Querido Antiácido?
Beijos, muitos.
Perdoa o silêncio.
Mau tempo na baía.
Espero estar apta em breve :)
Ena, nem me lembrava dessa famosa tirada do Vasco... Brilhante!
Sim, presumo que não seja uma coisa para partilhar com outrém, sob pena de outrém não compreender o porquê de tal colecção disfuncional.
Beijos. Sempre perdoada.
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