Era previsível. Quer dizer, nunca foi por falta de avisos e sinais e outros que tais. Já devias saber que indo por esse caminho, o desfecho era inevitável e, acima de tudo, mais que definitivo. Se esperavas poder chegar ao diálogo, resolver as coisas com meia dúzia de frases já repetidas até à exaustão, voltar a cair nos mesmos becos sem saída, vê-se mesmo que és um tonto. Assim acabaste triturado, despedaçado e devorado. Imagino que à medida que a tua carne foi sendo dilacerada, o pânico tenha diminuido, substituído lentamente pela inépcia de quem acaba de ser confrontado com a própria morte, às garras de algo que não percebemos muito bem, mas que existe e cujas mandíbulas que se fecham agora sobre ti são bem reais. Não, não estás num filme daqueles que costumavas ver às escuras no teu quarto, não, não vai haver um salvamento de última hora feito por um herói cheio de coragem, não, também não se trata de um pesadelo do qual vais acordar a qualquer instante. Aquele sangue no chão é mesmo teu. Os dentes que se cravam nas tuas vísceras são frios como punhais e a dor que provocam é lancinante o suficiente para te aperceberes que está tudo realmente a acontecer. Foste ingénuo, é certo, podias ter virado costas e talvez conseguisses que o teu coração batesse por mais um dia. Mas não, quiseste provar que a razão estava do teu lado e sempre esteve, mesmo quando do outro lado os enormes olhos que te fitavam apenas conseguiam reflectir o teu sangue a jorrar enquanto a sua boca salivava já de antecipação pelo sabor da tua carne, pelo tutano dos teus ossos. E agora aqui estamos, eis-te transformado de uma assentada em entradas, prato principal e sobremesa de um mal que não tem remorsos, apenas uma enorme gula por presas fáceis como tu. Resistir? Como? Se ainda mal tinhas dito a primeira frase e já a tua mão esquerda decepada jazia numa poça de sangue? E assim que a carnificina começou, o teu primeiro desejo foi que tudo acabasse rapidamente, sem lembranças que ficassem. Mas nem isso te foi concedido. Na verdade, e mesmo perdendo sucessivas partes do teu corpo, ficaste lúcido até praticamente ao fim, contorcendo-te com dores, rezando para que o teu coração parasse, para que não fosses obrigado a assistir à delapidação da tua carne e sangue. Ossos partidos, carne rasgada, um monte de restos ensanguentados aos pés da besta. E no último suspiro que deste, a revelação de que foste tu próprio que criaste este destino para ti. Que tu próprio decidiste, de tua livre e espontânea vontade, a tua redução a nada mais que um monte de ossos. Que aquela coisa indescritiva que se encontra à tua frente nem sequer fazia muita questão em te digerir. Bastava apenas que tivesses feito uma única coisa. Um pequenina decisão e nada disto se teria passado e ainda serias vivo. Apenas precisavas de... ter virado à esquerda. Tão somente isso.