terça-feira, abril 17, 2007

Céus de Abril

Gostava de ir ali ler. Sentar-se naqueles bancos de pedra, quase sempre frios, e ler durante horas, de preferência com o sol a bater-lhe na cara. Os amigos achavam aquilo mórbido, os pais diziam que havia alguma coisa errada com a cabeça dele e até já tinham pedido a opinião de um médico. Ele apenas dizia que gostava do silêncio do vento, da luz do sol e da paz que emanava daquele mar de lápides. Era um sítio sossegado, que normalmente só despertava ao fim-de-semana e no dia dos finados. A falta de jardins ao pé da sua casa condicionava um bocado a escolha de um sítio para poder estar a ler, de modo que ali ao menos tinha tempo e luz o dia todo para poder devorar um livro atrás de outro. Normalmente o silêncio apenas era interrompido pelas tarefas de mudar as flores e a água e limpar as lápides, que as senhoras de cabelo branco iam fazendo, dia sim dia não. Pareciam todas iguais. Cabelos brancos, idade avançada, rugas na face e nas mãos, sempre com um molho de cravos ou de rosas na mão, passando horas e mais horas de volta do descanso final de maridos, filhos, irmãs, tios, familiares e amigos. E todas iguais, pelo menos aos seus olhos que às vezes se perdiam das folhas dos livros para observarem o horizonte à sua volta. Quase todas tinham idade para serem sua avó e faziam aqueles rituais exactamente da mesma forma que ela costumava fazer, quando a sua saúde ainda lhe permitia visitar a campa do avô que ele não tinha chegado a conhecer. Seria por isso que elas lhe pareciam serem todas iguais? Talvez, desde que se conhecia como gente que sabia o ritual da visita ao cemitério de cor e salteado. Mas enquanto dantes participava, ajudando a avó a cortar as flores e a mudar a água dos jarros e limpando tudo antes de se afastarem, agora apenas observava, assistia a tudo como se de um filme antigo se tratasse. E ele era o actor mais novo daquele filme. Eram raras as pessoas da sua idade que por ali passavam. Algumas, a maioria, costumava ficar do lado de fora do portão, a fumar um cigarro enquanto olhavam cá para dentro, com um misto de receio e desprezo. Talvez também por isso atraísse a atenção das pessoas, que estranhavam alguém tão novo ali, e ainda por cima sempre a ler. Por isso também não gostava muito de levantar os olhos das palavras que lia, sentia que perturbava o seu próprio silêncio. Mas naquele dia algo tinha prendido a sua atenção. Não muito longe do seu banco, alguém encontrava-se junto a uma das lápides mais recentes. Um homem. Da idade do seu pai, muito provavelmente. Não conseguia perceber se o homem estava sentado ou de joelhos, apenas conseguia ver que estava abraçado à lápide. E chorava. Convulsivamente chorava, mas sem um único ruído. As lágrimas corriam-lhe pela cara e não davam sinal de pararem. Os olhos dele estavam perdidos num ponto qualquer imperceptível da campa e, apesar de haver mais gente ali à volta, parecia envolto num manto de solidão e tristeza que quase fazia a luz do sol parecer menos luminosa. As lágrimas do homem tornaram-se mais dispersas e, por um momento, os olhos dele cruzaram-se com os seus. E nesse momento, com as páginas do livro a baloiçarem ao sabor do vento, sentado, também ele chorou. Duas pequenas lágrimas rolaram pela sua face abaixo. E pela primeira vez ele acabou por chorar ali, no meio de todas aquelas almas já desaparecidas. E foi também a última vez que por ali andou. Deixou as suas leituras para outros dias e para outros locais. Achou que era altura de começar a viver mais e a ler menos.

(Dedicado a Francisco, em memória de São.)

5 comentários:

Sofia Viseu disse...

mais um belo e comovente texto teu. jinhos

Sea disse...

ternura, entre linhas
:)

beijo

Nuno Guronsan disse...

Imensa ternura, muitas saudades e muita dificuldade em ler isto sem sentir um arrepio...

Beijos a ambas e obrigado por continuarem a passar por aqui.

A disse...

E uma lágrima rola agora, Nuno...

As tuas histórias estão cada vez mais bonitas, revestidas de uma beleza ímpar... sem palavras...

A vida e a morte afecta-nos e destroça-nos (nao sei se a ideia e o conceito de morte serão mais devastadores que a própria vida, no expoente máximo da sua crueldade...) mas nem todos conseguimos traduzir isso em palavras...

Tu consegues.

Obrigada.

Beijinhos

Nuno Guronsan disse...

Concordo. Há crueldade em ambas, sendo que o que realmente interessa é como confrontamos isso e seguimos em frente. E aí penso que passa não só por palavras, mas principalmente por actos. De fé e confiança. Sobretudo em nós.

Beijos, amiga.