quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Vínhamos de mãos dadas, descendo a rua como o fazíamos quase todos os fins-de-semana. Trazias o teu gorro, o teu cachecol e as tuas luvas, procurando de alguma forma não entrar em contacto com o vento frio que vinha do rio. O pouco sol que havia não era suficiente para aquecer os nossos corpos, e eu apertei também o casaco depois de alguns arrepios. Já quase não precisavas da minha ajuda para suplantares os paralelipípedos que surgiam debaixo dos nossos pés. Daí que não me espantasse com as tuas palavras quando chegámos à escadaria que nos levaria à baixa. “Pai, hoje não quero ajudas. Vou descer sozinho. Pode ser?” “Podes. Mas não largas o corrimão, está bem?” Acenaste rapidamente com a cabeça, enquanto atacavas os primeiros degraus. Sim, estavas a crescer em frente aos meus olhos. Começavas a percorrer as ruas como se fossem já tuas. Enquanto descias os degraus, primeiro temerário depois mais cauteloso, pensava que gostarias de ter conhecido o meu pai. Sim, irias sem dúvida ter gostado dele. A generosidade que ele tinha para com todos à sua volta, a forma como nos deixávamos invadir pelos seus olhos doces, o jeito que ele tinha para ser criança junto das verdadeiras crianças. Gostava de ser para ti um infímo daquilo que o meu pai foi para mim. Gostava, desejava que a tua infância seja tão inesquecível como a minha. Gostava que tivesses conhecido o meu pai, o teu avô. Na verdade, acho que me posso dar por feliz por ainda teres conhecido a minha mãe, a tua avó. Pois ela, mesmo tendo sido a pessoa que me deu disciplina, que me ensinou o que é respeito, embora tenha sido ela a "mão pesada" durante os meus tempos de criança, sei que nunca vais esquecer o amor que ela teve por ti desde o segundo em que nasceste. Ajeito-te o cachecol enquanto vais descendo a escadaria bonita, como tu lhe chamas. Sabes que foi a avó que to tricotou, não sabes? Claro que sabes, deve ser por isso mesmo que nunca queres usar outro que não esse. Apesar da terrível doença que a levou, e que me fez explicar-te cedo demais o que significa nunca mais vermos alguém que amamos, sei que ela vai estar sempre contigo. Não é por acaso que, no teu quarto, decidiste pôr uma moldura com uma fotografia em que estás ao colo dela, ao colo da minha mãe, juntamente com outros fotografias que escolheste, tuas, minhas, da tua mãe. Sei que vais recordar sempre o sorriso da tua avó, mesmo quando ela já não tinha razões para sorrir e quando escondia as lágrimas de ti, chorando apenas quando saías do quarto. Sim, tu não esquecerás a tua avó, eu não consigo esquecer a minha mãe. Chegamos ao fim da escadaria. “Bravo. Conseguiste.” “Estás a ver, pai? Já estou grande.” E dizendo estas palavras, como se celebrasses a maior das vitórias, voltaste a dar-me a mão. Sabendo que a rua era tua, tal como eu era teu. Sem ajudas.



2 comentários:

Anónimo disse...

Gostei muito de ler este texto. Mesmo muito.

Bjs
RF

Nuno Guronsan disse...

Disponha sempre, minha querida gurua.
Gosto muito que passes por aqui.
Beijos. Grandes.