Chamavam-lhe Pap'Arroz. Uma daquelas alcunhas que vinham dos tempos de infância e que atravessavam o tempo, agarrando-se ao nome de todas as pessoas que viviam na aldeia e as acompanhavam até ao fim dos seus dias. Nunca cheguei a perguntar o porquê daquele nome e, na verdade, não sei explicar porque nunca o fiz. Sabia, por exemplo, porque é que a minha avó chamava Ganso ao meu pai. Sabia porque é que o meu avô tinha o pregão de Pinguinhas agrafado ao seu nome. Mas o porquê daquele eremita-que-não-o-era-verdadeiramente se chamar Pap'Arroz, nunca me ocorreu perguntar.
A figura daquele homem velho atravessou boa parte da minha infância, sempre que passava férias na velha aldeia onde os meus pais e os pais deles todos nasceram. Lembro-me da sua casa, antiga como poucas naquela parte da aldeia, onde começavam a surgir a toda a volta vivendas compradas e construídas com as divisas que chegavam de outros países europeus. Era uma casa feita de pedra, com um aspecto tão duro e desgastado como o homem que a habitava. A porta da casa era, como muitas na aldeia, "partida" ao meio, permitindo que a parte de baixo ficasse fechada, enquanto a parte de cima podia ficar aberta, tornando-se mais uma janela para ver o que se passava lá fora. Era por aí que surgia, logo pela manhã, o som da missa pelo éter, acompanhado pela ladainha oratória do homem.
Raramente vi aquele homem sair da sua casa. Talvez numa ou outra procissão, sempre atrás de todas as outras pessoas que seguiam os andores. Lembro-me que havia uma única pessoa que o visitava, que lhe levava coisas lá para casa, uma familiar distante que vivia numa aldeia vizinha, do outro lado do rio. Lembro-me ainda que sempre que ocorriam estas visitas, não tardava muito até ouvir os gritos do homem e da familiar, discussões que me deixavam aterrado, ainda com mais medo do que aquele que já sentia por aquela figura. Não que o homem alguma vez me tenha feito mal. Aliás, acho que nunca lhe teria dado oportunidade para tal. Um punhado de vezes tentou mesmo falar comigo mas a sua voz grave como um trovão, ou assim me parecia, era o suficiente para eu desatar a correr pelas escadas acima da casa do meu avô. Aquela voz, as suas roupas quase sempre pretas e gastas, o chapéu com que até dentro de casa andava, e a sua longa barba negra constrastando com os cabelos já esbranquiçados que fugiam por debaixo do chapéu, todo aquele aspecto deixava-me com um medo tal que nem mesmo os enormes cães de guarda da quinta ali ao lado, sempre a latir quando me viam passar, nem esses monstros continuamente a ladrar me deixavam com tanto medo. Era um puto, e os medos e receios que nos assaltam quando somos putos não se explicam. Curiosamente, quando o velho Pap'Arroz rezava, não tinha receio e até cheguei a pensar que eram pessoas diferentes, que nunca o velho de voz de trovão poderia ser a mesma pessoa cujo suave murmúrio entrava todos os dias pela janela. Seja como fôr, acabou por ser uma daquelas pessoas que associava imediatamente aos dias que passava naquela aldeia longe da minha casa. E o tempo foi passando, e eu cresci, e o medo foi-se desvanecendo até não passar de uma memória de criança.
Já estaria na universidade. Foi dos últimos verões que acabei por passar na terra. Daí a algum tempo os meus avós começariam a sua romaria entre as casas das filhas e só nos tornaríamos a encontrar todos na terra em algumas ocasiões especiais e cada vez mais dispersas. Naquele verão fui dar com a casa do velho Pap'Arroz fechada e sem o habitual som do rádio. Perguntei à minha avó. Tinha morrido na passagem do inverno para a primavera. A familiar distante tinha-o encontrado deitado na cama, com as mãos fechadas a segurarem um terço, e já com o rádio silencioso na mesinha de cabeceira. Perguntei à minha avó se tinha ido muita gente ao funeral. Ela quase estranhou a minha pergunta e disse-me que sim, claro que sim, era uma pessoa da terra e nunca as pessoas da terra são deixadas sozinhas enquanto rumam ao seu último lugar de descanso. Disse-me ainda que da próxima vez que fôssemos ao cemitério, levaríamos também algumas flores para deixar na campa do velho.
Fiquei a pensar durante toda a tarde nas suas palavras. E fiquei a pensar também que com o desaparecimento daquele velho eremita-que-não-o-era, também uma parte da minha juventude desaparecia com ele. E que a partir daquele dia só teria a companhia do piar dos pássaros e do repicar dos sinos nas minhas preguiçosas manhãs passadas na aldeia.
6 comentários:
Gosto muito de [te] ler. São memórias assim que nos aquecem os dias :)
Beijinho e bom fim de semana
Obrigado, Micas.
É um prazer que [me] leias.
Beijos grandes.
hhhhuuummmm são tão bons esses sentires...essas recordações, tenho várias desde a mais medonha........ à mais prazerosa....
Mas sem duvida que de facto a tua escrita nós faz sentir e reportar a elas.... cada vez mais sentido e descritivo....fazendo nos embarcar em todos os sentires que por vezes já nem nos "recordamos", e é necessário algo assim genuíno para que ao lermos nos arrepie......
Um beijo especial
De certeza que os arrepios não são do frio que está lá fora? :)
Obrigado, amiga.
Beijos grandes.
Tambem eu gosto muito de te ler... nem sempre comento, mas sempre lendo... abraços
Muito obrigado pelas simpáticas palavras. Volte sempre. Beijos.
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