segunda-feira, março 16, 2009
Raízes
O táxi parou. O motorista virou-se para trás, disse que tinham chegado e apontou para o quadro que indicava a quantia a pagar. Ela deu-lhe uma nota, disse que podia ficar com o troco e saiu do carro. Ficou ali, na berma da estrada, parada, enquanto o táxi se afastava. Estava longe, muito longe de tudo a que estava habituada. Ali, parada, no meio de campos verdes a perder de vista, sentiu a usual sensação de desconforto que a assolava de cada vez que deixava a cidade. Mas desta vez era diferente, desta vez não haveria data de regresso ao apartamento onde tinha vivido desde que se lembrava. Desta vez vinha para ficar, mesmo que não soubesse onde era realmente esse local. Desde o momento em que tinha entrado no táxi que as estradas secundárias se tinham seguido umas atrás das outras, curvas e mais curvas serpenteando pelo meio de campos cultivados e montes perdidos, com a sombra das árvores a tombar sobre o asfalto. Agora estava ali, num ponto longínquo, fora do mapa, ou pelo menos assim lhe parecia. Não o podia confirmar realmente, pois não trazia qualquer mapa consigo. Aliás, não trazia mesmo nada nas mãos, para além da sua carteira e de um casaco que entretanto se tinha tornado obsoleto face ao calor que ali estava. Olhou em seu redor. Não fosse a estrada e não conseguiria reconhecer qualquer sinal de que houvesse presença humana naquele sítio. Sentia-se perdida e começava a desconfiar que o taxista se pudesse ter enganado. Mas ele parecia tão certo de conhecer o sítio que ela buscava. Enquanto pensava nisto, lembrou-se que ele lhe tinha dito que ainda teria que andar um bocado, pois não havia estradas para lá, até porque não era um sítio que a maior parte das pessoas procurasse avidamente. E assim, entrou pelos campos adentro, onde a vegetação lhe chegava até à cintura, parecendo-lhe que estava a desbravar um mar revolto, de água barrenta, castanha e opaca. Havia árvores, mas eram dispersas e quase não quebravam a monotonia do resto da paisagem. Deu por si a subir, lentamente, um pequeno monte e ficou agradada com a ideia, pois do seu cimo seria provavelmente possível ver mais além do seu actual horizonte, e talvez descobrisse finalmente o seu destino. Entretanto o calor não abrandava e em conjunto com o esforço da sua caminhada, algumas gotas de suor surgiram na sua face. Não o bastante para desistir dos seus esforços e em menos de nada ali estava ela, no cimo do monte. E o seu sentimento de isolamento cresceu ainda mais. Até onde os seus olhos podiam ver, nada nem ninguém parecia andar por ali. Nada nem ninguém. O desânimo era eminente. Tinha vindo de tão longe, percorrido tantos e tantos quilómetros e agora, que estava tão perto, nada. Até que subitamente, e quase como se tivesse surgido do interior do solo, lá estava. O seu destino. A sua árvore. Desceu o monte na sua direcção e perante a proximidade os seus pés praticamente ganharam asas. Não demorou muito tempo até que ela se encontrasse junto às raízes da árvore, que lhe parecia agora muito maior do que à primeira vista. Na verdade, o seu tronco maciço e enrugado, e os seus inúmeros ramos e folhas, quase tapavam por completo o sol que a tinha perseguido durante todo o caminho para chegar ali. Os seus olhos percorriam todas as ramificações da árvore. Aqui e ali acabou por descobrir mais pessoas, quase ocultas no seio verde da árvore. Homens, mulheres, de todas as cores, de todas as idades. Alguns quase indistinguíveis dos ramos onde se encontravam, outros ainda apenas meio assimilados. Sabia a razão para todos eles estarem ali, afinal, era a mesma razão pela qual ela própria também se tinha encaminhado para aquele local. Por isso não estranhou nem receou quando, lentamente dois dos ramos poderosos da árvore se começaram a dirigir para si. Quase como se de um baloiço se tratasse, pegaram nela e começaram a elevá-la bem alto, quase quase para a copa da árvore. Agarrada aos ramos que a transportavam, sentiu uma pontinha de felicidade ao ver o sítio que lhe estava determinado, dali iria poder ver o nascer do sol todos os dias, esse que era o momento preferido dos dias dela. E foi assim que, abraçada à árvore, começou a sentir aquela casca centenária a cobri-la, muito lentamente, como se alguém estivesse a aconchegá-la na sua cama, de volta ao seu apartamento. Sabia que muitas estações passariam até que a árvore conseguisse recuperar todos os pedacinhos do seu coração destroçado e devolver-lhe todo o amor que o seu coração tinha até então abrigado. Não era uma tarefa fácil nem rápida, mas ela sabia que isso iria acontecer, mais tarde ou mais cedo, e estava preparada para ali ficar até ter o seu coração de novo completo. E também sabia que nesse momento estaria pronta para descer da árvore e voltar a percorrer a estrada da sua vida. Agora apenas lhe restava saber que ali estaria em segurança, protegida e abrigada de toda a tristeza e desgosto que lhe tinha deixado o coração naquele estado. Podia descansar e contentar a sua alma apenas com um nascer do sol, e não precisaria de mais nada...
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7 comentários:
:)
beijo.
Era tão bom que pudesse ser assim tão fácil curar todos os males que nos fazem, todas as mentiras que nos contam, os estilhaços que se nos metem dentro do coração.
Cure for Pain?
:)
Bem hajas, Nuno, por nos contares coisas assim tão belas, tão cheias de esperança.
Estás perdoado, "Georgie"...
E se eu apanhar o próximo táxi, será que ele me sabe levar lá?
Gostei. =)
Beijos.
«...de acordar lentamente, um dia destes, e ser tudo azul
de que me crescesse um nenúfar no lugar do coração e morrer assim, inundada de felicidade»
Normalmente a luz costuma safar-nos :)
Relembraste-me Alan Moore's "Swamp Thing". Recomendo vivamente, e os meus parabéns, porque para não variar, tens a pena afinadíssima. :)
Abraço!
Humildemente me curvo perante os vossos elogios e fico sem palavras para dizer o que seja.
Resta-me agradecer, do fundo do meu coração, por continuarem a ser meus leitores e espero continuar a merecer a vossa preferência. Nem que seja com estes arremendos de sonhos e pesadelos...
Obrigado, bem hajam!
Abreijos.
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