terça-feira, outubro 08, 2013

domingo, outubro 06, 2013

Puto.

Acordou com os primeiros raios de Sol da manhã, a entrarem sem desculpas pelas frestas da persiana. Olhos semi-cerrados, pálpebras lentamente a fugirem da escuridão da noite para a luz do dia. Músculos a a acordarem da hibernação, lentamente a regressarem à vida. Todo um corpo. Os seus olhos ficaram finalmente abertos, atentos a tudo o que o rodeava naquele quarto ainda com muitas sombras. Olhou para o lado. Delineado pelos raios de luz da janela, estava o corpo dela. Contemplava as costas dela. A nudez do corpo, a brancura da pele mergulhada nos cabelos loiros com pequenas manchas negras por raízes. Fitava o seu pequeno corpo nu, desafiando o seu olhar agora totalmente desperto. A sua mão percorreu as linhas das costas dela, planando sobre o seu corpo, evitando despertá-la do seu sono profundo. Sem a tocar mas com a mesma intimidade da noite passada, quando os seus corpos se encontraram, colados, fazendo um único organismo na sua ânsia de desaparecerem um no outro. Sentiu um arrepio atravessar todo o seu corpo. Uma espécie de electricidade sem o ser. Uma forma de o seu corpo perceber que o Verão já tinha terminado, anunciava-se o frio outonal. Tal como o cabelo dela que não se cansava de olhar, também a noite começaria a chegar mais cedo, a luz solar a baixar no horizonte dos seus ombros. Gostava dos dias longos, não gostava da noite que chegava sempre demasiado cedo. Levantou-se, silenciosamente, o sono dela era precioso. Vestiu as roupas que tinham ficado abandonadas no chão do quarto. Saiu, fechando cuidadosamente a porta, o único movimento concentrado na respiração dela, suave, quase inaudível. O resto da casa também ainda dormia. Aqui e ali, uma ou outra linha de luz, uma ou outra persiana que teimava em não recolher toda. Deixou que os seus passos o guiassem, em trânse, em falso sonambulismo, até ao quarto mais pequeno da casa. Também aí uma pessoa dormia tranquilamente. Sem pesadelos. Como devia ser sempre, pensava ele. Pessoas com cinco anos de vida nunca deviam ter pesadelos, devia ser proibido. Mas perguntava-se se seria mesmo assim, pensava e questionava-se enquanto olhava a criança meio tapada meio descoberta, espalhada pela cama que quase parecia de brincar. Que sonhos teria ele? Seriam como os sonhos da sua própria infância, já tão distante no tempo? Será que sonhava em voar no dorso de um pégaso? Será que sonhava em ser um bombeiro ou um médico? Será que sonhava em jogar futebol ao lado dos melhores craques do mundo? Será que sonhava com a sua mãe? Com o seu colo? Com as brincadeiras que fazia com os seus cabelos loiros com pequenas manchas negras por raízes? Será que sonhava com isto tudo? Era o seu íntimo desejo que a resposta fosse sim. Desejava até, com um bocadinho de egoísmo sim era verdade, que a criança pudesse sonhar com ele próprio. Com as brincadeiras que os dois faziam. Com os livros que ele lhe lia. Com as músicas ao som das quais dançavam em cima da cama. Desejava que os seus sonhos fossem tão bonitos como os seus dias. Acima de tudo, e não sabia como reagir perante tal pensamento, desejava que ele não sonhasse com o seu pai. Porque isso não seria um bom sonho. Que a criança não pensasse, no seio do seu sono, numa pessoa que o tinha abandonado, que o tinha deixado para trás. Um pai que apenas tinha deixado o seu nome, o seu apelido, e que não tinha qualquer interesse em se relacionar com a criança. Um pai que não o amava, não o conhecia, nem queria saber que a criança sequer existisse. Será que se podia realmente chamá-lo de pai? Ele não saberia responder. Enquanto olhava a pequena cara da pequena pessoa que ainda dormia, deixava que tudo isto atravessasse a sua mente. A criança sabia que ele não era o pai dela. Sabia que ele estava com a mãe e com ele, o filho. Nunca lhe tinham escondido nada, e nunca o iriam fazer. Ele já era muito inteligente e tinha um especial dom para descobrir mentiras. Seriam sempre honestos com ele. Os dois. Os três, lado a lado. Contra o resto do mundo. Como se fossem super-heróis das bandas desenhadas que ele lia até ser embalado nos braços de Morpheus. Não conseguia deixar de esboçar um sorriso sempre que via a criança a dormir assim, no sossego dos primeiros minutos de uma nova manhã. Fechou a porta, lentamente, vendo-o a dar as primeiras voltas debaixo dos lençois antes de acordar. Era um novo dia. Uma nova oportunidade de serem felizes.


quarta-feira, outubro 02, 2013

Da maresia.


E tudo aquilo que envolve este mar que me deixa horas e horas a olhar para ele.

terça-feira, outubro 01, 2013

Fumo e depressão

"Recomecei a fumar. Tinha saudades. O meu médico diz que é bom sinal. Que estou menos deprimido. Que quando se está deprimido até ao prazer de fumar nos recusamos. Parece-me curioso mas acredito. O meu médico fuma cigarros consecutivamente e não me parece nada deprimido. Como seria um psiquiatra deprimido, com a sua própria vontade de morrer, a tratar as depressões de outros?
Voltei a fumar tal como deixei de fumar. Sem dar por isso. De uma dia para o outro. É bom fumar. É uma metáfora do mundo. Tanto tempo para as coisas se mostrarem, se fazerem, tão pouco para desaparecerem, tão pouco para durarem. O tempo de fumar um cigarro até meio."

Pedro Paixão

 

quinta-feira, setembro 26, 2013

Um mal maior

Abriste o portão e entraste pela quinta dentro, como se ela ainda te pertencesse. Como se ainda morasses aqui. O cão correu para ti, saltou para os teus braços e lambeu-te a face, como sempre te fazia quando regressavas do trabalho. Tu sorriste, um sorriso feito de uma ténue nostalgia. Olhaste para a laranjeira. Esticaste-te para alcançar um dos frutos. Cheiraste-o e provavelmente recordaste os sumos que fazias nos verões que passámos juntos, sentados no jardim, a ver o sol a esconder-se no horizonte. A frescura do sumo nas nossas gargantas, o calor da tua mão repousada na minha. Largaste a laranja e foste para o teu jardim. Para as tuas plantas. Todas as flores que plantastes ao longo dos anos, as tuas crianças como lhes chamavas. Pegaste no regador, encheste-lo na fonte, e regaste as flores. Os teus cabelos taparam-te a cara, não consegui ver o que sentias ao regar mais uma vez as tuas plantas. Pousaste o regador e ficaste a olhar para a casa. Não tanto a olhar para as suas paredes, janelas, telhado, mas mais através dela, como se tentasses ver-me, no seu interior. Conseguia ver isso no teu olhar, a curiosidade para saber onde eu estava, o que estava a fazer, com quem o estava a fazer. Um misto de curiosidade e lamento. Tudo isso provinha dos teus olhos, das tuas feições, de todo o teu corpo ao lado do qual tantos e tantos anos vivi, amei, comunguei. Até que os teus olhos se cruzaram com os meus. Tu, lá fora no jardim, eu do lado de dentro da janela da sala. Ficámos a olhar, um para o outro, durante toda uma eternidade. Todas as nossas emoções revividas vezes sem conta. Até que não aguentei mais. Puxei os cortinados e deixei-te ali, no jardim, sozinha, longe de mim, com o sol a cair lentamente no céu, nas tuas costas.


domingo, setembro 22, 2013

Dogwalker

"Vim para aqui para escapar de outros lugares. Fiquei por aqui por não haver outro sítio que pudesse chamar meu. Esta cidade não é de ninguém. É de quem cá chega, vive e morre, para poder voltar a não ser de ninguém. Uma nação de estrangeiros num mesmo navio que o milagre da vontade impede de naufragar. Ou então é outra coisa, não sei, não costumo pensar nisto. Sei que há horas em que me sinto feliz por estar por aqui e basta."

Pedro Paixão


 

sexta-feira, setembro 20, 2013

segunda-feira, setembro 16, 2013

A pensar no sorteio de amanhã...




Castelos

Chegaste e foi como se o tempo não tivesse passado. Sentámo-nos e comemos e bebemos e conversámos. Vimos o Sol a esconder-se e caminhámos sob a Lua iluminada. Acordámos ao mesmo tempo e a tempo de tomarmos o pequeno-almoço juntos, lentamente, de janela aberta a ver a névoa matinal fugir para trás dos montes. Guiámos pelas estradas aos altos e baixos, a ouvir a banda sonora que nem sempre é dos dois. Caminhámos e caminhámos. Subimos e descemos escadarias atrás de escadarias. Fugimos do Sol abrasador debaixo de uma sombra centenária. Umas vezes a conversar, outras vezes a ler o jornal do dia, outras ainda a ler livros de viagens que ainda não fizémos. Fomos ao nosso restaurante, aquele a que sempre voltamos, sempre com o prazer de saber quem está lá para nos receber. Percorremos as muralhas de um castelo perdido no tempo, pela noite adentro, cuidadosos nos nossos passos e nunca repetindo o mesmo caminho. Fazemos as sestas habituais, aquelas a que esta terra sempre nos puxa. Desligamos a televisão, exasperados com o estado das coisas que nunca mais muda, ligamos a rádio para nos lembrarmos de outros dias, outros tempos. Saímos para a rua, nem sempre certos do destino que queremos. Mergulhamos nas águas frias de um fim de tarde azul, secamos ao sol num prado verde que nunca mais acaba. Subimos e subimos e subimos até quase tocarmos nas pequenas nuvens que ainda passeiam no céu. Vamos aos sítios onde fomos e continuamos a ser felizes, com sorrisos inesgotáveis. Não nos cansamos de percorrer as calçadas portuguesas, os jardins com aspersores que nos surpreendem, de encontrar as pessoas mais simpáticas do mundo, por muitas missões estranhas que tenham. Sorrimos com as pessoas que nos conhecem, sorrimos com as pessoas que acabámos de conhecer e que já nos saúdam como amizades antigas. Partilhamos esta luz que permeia os nossos dias e aproveitamos todos os minutos para falarmos de tudo e de nada. E hoje é folga. Partiste e foi como se o tempo não tivesse passado. Até breve.

sexta-feira, agosto 23, 2013

Coisas improváveis





Mas que deixam marcas profundas na espuma dos dias de Verão alentejano... Bem hajam.


terça-feira, agosto 13, 2013

"Uma caixa de cimento fresco. Deita-o
lá dentro. Mete-te na mota, arranca, não
penses mais nisso. A sul, há mulheres
cujo futuro é um avião que não deixa
traços no céu. A norte, se preferires,
há-as engarrafadas, em decilitragens
as mais diversas. Com os homens
é a mesma coisa, dois dedos de conversa
e uns quantos cubos de gelo. Meia
hora chega para ir repondo o stock
de episódios com que fingir que estamos
vivos. Isso deve bastar-te, excepto
se te achares mais do que os outros
e Deus te livre de uma coisa dessas.
É isso: aprende a metafísica das
t-shirts brancas, das curvas apertadas,
da velocidade calma. O resto é
conversa de poetas, filósofos, historia-
dores, que fumam mais do que vêem
e lêem mais do que assobiam ao sair
à rua. O resto é uma perda de tempo
e não eras tu o tal que tanto nos
maçava com a iminência da
morte, com a falência da Sociedade
por quotas, com a genealogia
dos suínos? Aproveita agora esta
oportunidade de não ser nada
contigo; juro-te que ninguém
te vai levar a mal; envia, apenas,
um postal de Tânger e um contacto,
para o caso do Emanuel ou a
Angelina quererem ir de férias e
precisarem de um sítio onde ficar.
Não é pedir muito em troca da
tua liberdade. Vá! Uma caixa de
cimento fresco. Deita-o lá dentro.
Sabes do que estou a falar. Ver-
melho escuro. Isso. O coração."

Miguel Martins

 

quarta-feira, agosto 07, 2013

Morte

"Sabemos que de todas as sementes
é a mais pesada. Havemos de esperar
por ela. Acolhemo-la e nada
podia ser tão nosso. Compreendemos
que no seu interior talvez exista
a última seiva, o rumor de outra
germinação para que fique
junto dela. Descai silenciosa
e devagar. A terra é o nosso corpo."

Fernando Guimarães



(a propósito do suicídio de uma mulher, numa casa provavelmente caiada de branco e azul, perdida algures num vale alentejano, rodeada de serras e floresta a perder de vista, sob um céu abundantemente azul enquanto o sol tinge de vermelho o horizonte.)


quinta-feira, agosto 01, 2013

Serviços mínimos


... que a vida não está para se viver acima das nossas possibilidades (bocejo).
... ou como já se dava uma volta de 180 graus a este país, cujas pessoas tanto o merecem.


quarta-feira, julho 17, 2013

Das palavras que gostava de ter sido eu a escrever...

"No dia em que se separaram, Erik Gould abriu a porta da rua, lentamente, e saiu para o jardim. Ficou parado em frente aos canteiros de flores. Tirou o cinto, despiu as calças, depois a camisola de lã, depois a camisola interior, depois as meias. Ficou nu no meio das flores. Debruçou-se e rasgou as mãos no canteiro das rosas. Abraçou-as, acariciou-as até sangrar das mãos, dos braços, do peito, dos lábios, do sexo, da cara, até não poder mais com a dor espetada na carne.
Voltou para casa e regou o corpo com álcool enquanto gritava. Deitou-se de seguida e dormiu mais de dezoito horas. Acordou com dores no corpo todo, a espremerem-lhe a carne como se faz sumo. As feridas causadas pelos espinhos das rosas acabaram por cicatrizar passado uma semana e desapareceram. Gould não pensava em outra coisa que não fosse a sua mulher e assim continuou, como se as feridas das rosas afinal nunca mais desaparecessem. As unhas dos pés apodreceram, a sua imaginação caiu como as maçãs demasiado maduras, as notas do piano soavam a mofo. As teclas eram para bater em vez de tocar. Sentava-se ao piano, contudo, e pensava que seria possível tocar como os encantadores de serpentes, fazer com a sua mulher voltasse. Por vezes tocava mais de um dia sem parar. Os sonhos de Gould eram uma forma de Elizaveta se deitar dentro da sua cabeça. Não pensava em mais nada que não fosse Elizaveta.
Os anos sucediam-se, eram cicatrizes de trezentos e sessenta e tal dias, mas a sua esperança não diminuía. Apagava cigarros no braço e sentia que essa dor era uma espécie de alegria. Quando saía, mesmo que a ausência não fosse maio do que alguns minutos, telefonava para casa. Parava em todo o lado onde houvesse um telefone e marcava o número da sua própria casa. Ouvia o sinal e desligava quando ninguém atendia. Acreditava que Elizaveta pudesse voltar quando ele não estivesse em casa para a receber e a beijar dos pés até ao coração."

Afonso Cruz

 

quarta-feira, julho 10, 2013

Em Busca D'Eus Desconhecidos

 "A ficção - certa ficção - talvez seja a forma mais poderosa de exercitar o pensamento, de acelerar a realidade lenta do quotidiano. Escrita ou lida, a ficção escava-nos por dentro, rasga novos canais para o eu. Desacerta-nos com o que éramos. E tanto faz que sejamos nós a escrever ou a ler."

Dulce Maria Cardoso


 

terça-feira, junho 25, 2013

Yoga For People Who Can't Be Bothered To Do It

"There is something about leaving a place on a small boat - something about the movement of the waves, the noise of the engine: it is like you are leaving your life behind and yet, since you are part of the life you have left behind, part of you is still there. Dying, at its best, might be something like this. Everything was a memory, and everything was still happening in some extended present, and everything was still to come."


Geoff Dyer


(isto podia ser eu. no ano 2000. a deixar Mindoro atrás de mim.)


domingo, junho 23, 2013

Prunus Avium

Viver no interior continua a ser uma experiência inesquecível. Tanta coisa para ver, tanta coisa para contar. E no centro de tudo as pessoas. As pessoas que continuam a surpreender-me com os seus olhares, as suas partilhas, a sua forma de estar aqui, na raia. Longe de tudo, hoje, no meio de serras e muito calor, fui mais uma vez presenteado com essa maravilha que é a simplicidade de sermos nós próprios, sem nos armarmos aos cucos, sem tentarmos impressionar quem seja, simplesmente estarmos com quem gostamos e com quem gosta também de nós. Obrigado. Vocês sabem quem são.




segunda-feira, junho 17, 2013

Vistas desafogadas


@Serra de Montejunto



(... enquanto se espera pelo regresso à normalidade e pelo fim das "maratonas"...)