"No dia em que se separaram, Erik Gould abriu a porta da rua, lentamente, e saiu para o jardim. Ficou parado em frente aos canteiros de flores. Tirou o cinto, despiu as calças, depois a camisola de lã, depois a camisola interior, depois as meias. Ficou nu no meio das flores. Debruçou-se e rasgou as mãos no canteiro das rosas. Abraçou-as, acariciou-as até sangrar das mãos, dos braços, do peito, dos lábios, do sexo, da cara, até não poder mais com a dor espetada na carne.
Voltou para casa e regou o corpo com álcool enquanto gritava. Deitou-se de seguida e dormiu mais de dezoito horas. Acordou com dores no corpo todo, a espremerem-lhe a carne como se faz sumo. As feridas causadas pelos espinhos das rosas acabaram por cicatrizar passado uma semana e desapareceram. Gould não pensava em outra coisa que não fosse a sua mulher e assim continuou, como se as feridas das rosas afinal nunca mais desaparecessem. As unhas dos pés apodreceram, a sua imaginação caiu como as maçãs demasiado maduras, as notas do piano soavam a mofo. As teclas eram para bater em vez de tocar. Sentava-se ao piano, contudo, e pensava que seria possível tocar como os encantadores de serpentes, fazer com a sua mulher voltasse. Por vezes tocava mais de um dia sem parar. Os sonhos de Gould eram uma forma de Elizaveta se deitar dentro da sua cabeça. Não pensava em mais nada que não fosse Elizaveta.
Os anos sucediam-se, eram cicatrizes de trezentos e sessenta e tal dias, mas a sua esperança não diminuía. Apagava cigarros no braço e sentia que essa dor era uma espécie de alegria. Quando saía, mesmo que a ausência não fosse maio do que alguns minutos, telefonava para casa. Parava em todo o lado onde houvesse um telefone e marcava o número da sua própria casa. Ouvia o sinal e desligava quando ninguém atendia. Acreditava que Elizaveta pudesse voltar quando ele não estivesse em casa para a receber e a beijar dos pés até ao coração."
Afonso Cruz
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