quinta-feira, abril 17, 2014

O fado, à distância de um piano

Ontem tive o prazer de ouvir o piano do Júlio Resende. E prazer é uma palavra demasiado tímida para descrever a música que me foi dada a ouvir. Apenas sei que o fado também passa por ali, por um piano que parece possuído, choroso, alegre, revoltado, saudoso nas mãos do Júlio. E por tudo aquilo, acabei por me lembrar de palavas que já escrevi há uns anos, mas que fazem todo o sentido no meu coração, na minha alma. Não resisto a voltar a elas.



Começou a ouvir as primeiras notas a ecoarem no silêncio do prédio. A vizinha de cima acabava de começar o seu "concerto" de final de tarde. Encostado no sofá, depois de mais um dia de trabalho, com a janela meio aberta, a deixar entrar alguma corrente de ar e aquela luz magnífica que só os fins de tarde de verão podem ter, no silêncio do seu apartamento, vai ouvindo as bonitas notas de um jazz de uma beleza em câmara lenta que a sua vizinha de cima toca de cada vez que os seus dedos encontram as teclas brancas e negras do seu piano. Naqueles dias quentes, acaba por ser a única coisa que o faz descontrair e arrefecer o espiríto. Imagina que ela toca apenas para ele, que as notas atravessam as paredes da casa com o único intuito de chegar aos seus ouvidos, a todos os recantos da sua mente, dando-lhe paz e sossego. Gosta mais das suas notas de verão. Mas também sente o coração reconfortado nas tardes chuvosas de inverno, quando a vizinha de cima toca peças clássicas, frias e minimais, das quais ele desconhece o nome do compositor. Nunca foi um conhecedor de música erudita e até quase que podia dizer que a mesma não o entusiasmava por aí além. Mas a combinação da contenção daquele piano, com as gotas de chuva a acariciarem o vidro da janela, e com o crepitar das pequenas labarelas na sua lareira, proporcionavam-lhe algo que não conseguia explicar. Talvez já morasse sozinho há demasiado tempo. Talvez os antigos pequenos momentos de solidão que apreciava se estivessem a tornar num vazio cada vez menos suportável. Talvez fosse apenas a sua cabeça a pregar-lhe partidas. Ou, naquele preciso momento, talvez o calor que vinha lá de fora fosse de tal forma abafado que a sua mente tivesse fugido para aquele antro de pensamentos esvoaçantes, ao som de um piano que não pedia permissão para se insinuar por toda a casa. Era engraçado que, de cada vez que tentava imaginar a vizinha de cima a tocar, apenas conseguia formar uma imagem mental das suas mãos a percorrerem o teclado, como se de uma peça de porcelana se tratasse. Não era porque não a conhecesse. Tinham-se cruzado umas quantas vezes, nas escadas, à entrada do prédio, em frente às caixas do correio. Algumas palavras de circunstância, bom dia, boa tarde, o tempo, as plantas da entrada, o carteiro que se enganava na correspondência, pouco mais. Nada sobre os concertos de piano. Tinha receio que ao mencionar algo sobre isso a deixasse desconfortável e o piano ficasse quedo e silencioso. Por isso, ele conhecia a sua vizinha de cima, sabia como eram as linhas e curvas do seu rosto, as formas do seu corpo, até o som da voz dela. Mas, naquele momento, sentado, no silêncio entrecortado pelo fluir das cordas do piano, a única imagem dela que lhe surgia era a dos seus dedos, movendo-se sem esforço, sentindo as teclas como se fossem extensões das falanges, as notas a sua voz. E se para apreciar a beleza sublime daquelas horas, daqueles verões, daqueles fins de tarde, se o preço a pagar fosse a solidão daquele apartamento que lhe servia de casa, pois então que fosse. Não se importava. Ouvir a sua vizinha de cima a tocar o piano era o amor que lhe chegava para incendiar o seu coração.


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