domingo, janeiro 08, 2012

Berma






Parecia cansado. Já não o via há alguns meses, mas não me lembro de o ver com um ar tão cansado. Ali, sentado à beira da estrada, com as canadianas a descansarem ao seu lado, com o sol da manhã a iluminar todas as rugas de uma face a caminhar para as setenta e seis Primaveras. Passei de carro, abrandando como sempre faço quando atravesso a aldeia, para responder a todos os acenos de gente que me conhece desde os meus primeiros passos. Ele não me acenou, talvez não me tenha reconhecido. Os seus olhos também já não o ajudam grande coisa, mas ele vai dizendo que não quer usar óculos, que para aquilo que a vida ainda lhe vai reservando dia após dia não precisa de lentes para nada. Chega para ler os livros que lhe restam na estante e para reconhecer as pessoas amigas que se chegam ao pé de si. Mas mesmo assim, ou talvez por isso, os seus olhos não escondam uma névoa da tristeza que é o livro da vida daquele homem. Vive sozinho já há uns bons dez anos, desde que a sua companheira de vida faleceu. É ele que o diz, a minha companheira envelheceu como eu e um dia achou que estava na altura, que o corpo dela já tinha vivido o suficiente, nem mais nem menos, só fiquei triste por ela me ter deixado sozinho com os outros vivos, aqueles que estão longe. É ele que assim o diz, uma pequena grande alfinetada a grande parte da sua família. Filhos e respectivas caras-metades há muito que trocaram a aldeia e o campo pela cidade, fazendo aquele percurso que tantos outros fizeram no seu tempo. Raramente o visitam e quando o fazem é quase de raspão. Os netos e netas também pouco lhe ligam, conhecia-os a quase todos e todas nos longos Verões que aqui passámos juntos, brincando até ao pôr-do-sol. Talvez que nuncam tenham sabido apreciar devidamente os seus avós, talvez porque estes nunca lhes fizeram as vontadinhas todas como os pais. Com o passar dos anos fui-me desligando de todos, vivemos em sítios diferentes, estudámos coisas diferentes e, na verdade, deixou de haver aquela empatia que em criança é tão fácil de acontecer. Apenas um dos seus netos ficou meu amigo, exactamente aquele que continua a visitá-lo, a ligar-lhe, a escrever-lhe. Passa cá todos os meses, e não raras vezes quando vou a passar de carro e o vejo sentado com o avô, conversando olhos nos olhos, mãos nas mãos, encosto o carro e junto-me a eles, a beber uma cerveja, a jogar às cartas, ou simplesmente a ver quem passa. Mas hoje estava sozinho, terrivelmente sozinho. E cansado. As pernas também já não são o que eram, as canadianas praticamente também se arrastam com ele. E no entanto, não se queixa. Diz que as coisas são como são, que não levou uma vida regrada para viver eternamente, viveu tudo aquilo que lhe dava prazer e sem arrependimentos, naquele pequeno mundo que sempre foi a sua aldeia. Sempre o conheci assim, prático e sem papas na língua, nada de romantismos balofos sobre o significado da vida. Isto de um homem cuja estante repleta de livros de poesia, filosofia, e outas "ias" sempre me deixaram com uma pontinha de inveja. Ele disfarça, diz que eram da sua companheira, que ele pouco os leu durante a vida, mas eu sei que não é bem assim, e sei até que ele sabe muitos daqueles poemas de cor, pois tantas e tantas vezes no meio de conversas comigo e com outras pessoas da aldeia lhe apanhei pequenos bocadinhos declamados e retirados daquelas mesmas páginas. Mesmo que hoje já não seja tão procurado pelas gentes da aldeia como outrora, será daqueles que nos vai fazer falta quando chegar a sua hora. Será um pedaço desta terra que também vai desaparecer para sempre, seis palmos debaixo da terra que o viu nascer. Eu vou sentir a sua falta também e quando penso nisto fico triste, muito triste. E é nisto que penso quando estou de novo a entrar de novo na aldeia e o vejo ainda sentado à beira da estrada, e nem penso duas vezes. Encosto o carro e vou ao seu encontro. E a minha tristeza vai-se dissipando à medida que me aproximo dele e à medida que sinto que ele me vai reconhecendo e que, ao de leve, começa a brotar um sorriso aberto nos seus lábios e que ele abre os seus braços para mim. É a forma de ele dizer, vem cá, meu amigo, que eu ainda não estou morto e ainda tenho alegria que chegue para nós e para o resto do dia.


4 comentários:

PenaBranca disse...

haja muita gente nova para fazer companhia à gente velha. muitas minis e cartas para jogar. família por perto para dar e receber amor em forma de sorriso, palavras ou gesto. é preciso espantar a solidão dos velhos. e dos novos que a sentem, mas têm vergonha de o dizer. haja mais esperança. e haja muitos horizontes livres e vistas limpas, sem um mar de cimento a toldar as vistas.

Nuno Guronsan disse...

Que mais posso dizer? Olha, tem cuidado. Consta que anda por aí gente que gosta de cimento...

:D

Abracete.

Anónimo disse...

Texto muito bonito e cheio de sentimento e de mensagens.

beijos e um abraço apertado
RF

Nuno Guronsan disse...

Fico feliz que tenhas gostado, minha querida.

bêjos