sexta-feira, janeiro 09, 2009

Garrafa

"Vá
uma morte louca
simpática
acolhedora
que não dê muito que falar
mas que também não gere
um silêncio excessivo"

Mário Cesariny


Lá estava ele no sítio do costume. No banco do costume, com o copo do costume. Copo atrás de copo, assim ele se ia mantendo por ali. Com as caras usuais à sua volta, enubladas como a sua, com almas tão turvas e perdidas como a dele. Camaradas de infortúnio, ou amigos inebriados, ou colegas de alegrias passadas, a definição variava de acordo com a quantidade de alcoól ingerido. Dia após dia, era a única rotina que tinha ou que procurava ter. Saía quase a correr do trabalho, fugindo das angústias e cabelos brancos que o mesmo lhe provocava. Ia direito ao café que era quase a sua segunda casa. Sim, sabia que aquilo não passava de um escape, uma forma de fugir à sua realidade quotidiana, pobre de tudo aquilo que um dia tinha imaginado que a sua vida podia ser. Uma máscara, um subterfúgio para continuar a poder dizer a si próprio que tudo estava bem. Nas primeiras vezes tinha gostado genuinamente do sítio e nem sequer era pelas bebidas. Gostava de encontrar aquelas caras simpáticas e humildes, sempre prontas para dois dedos de conversa ou para assistir pela televisão ao jogo dessa semana. Aos poucos começou a fazer parte daquela família, que se reunia à volta daquelas mesas, pedindo imperial atrás de imperial e às vezes bebendo uma ou outra espirituosa, como se fosse um pequeno prazer envergonhado perante aquele público anónimo. Imaginava que as coisas tinham derrapado quando esta fórmula de beber se inverteu e começou a perceber que não conseguia terminar o dia sem repetir a mesma bebida pelo menos uma meia dúzia de vezes. A ânsia começava assim que chegava ao escritório e até à hora de saída já não conseguia pensar noutra coisa. Quando entrava no café era saudado pelos seus pares. Ao início efusivamente, depois já quase e apenas por boa educação, numa altura em que a bebida era a sua única companhia a um canto escuro, a única que não o recriminava pela sua tristeza e melancolia. E assim foi escorrendo pela sarjeta em que a sua vida se começava a tornar. O prazer passou a vício e a história encaminhava-se para um fim triste. Curiosamente isso aconteceu num dia histórico. Obama acabava de ser eleito e por um breve momento todos os telejornais e canais de notícias esqueceram todas as crises, todas as guerras, todo o mal à face da terra, e a esperança era uma palavra repetida até à exaustão nos rodapés de todas as televisões de todo o mundo. E nesse dia, sentado na sua mesa, em frente a um copo vazio, e olhando para o ecrãn do televisor, também ele sonhou que a sua vida ainda podia ter um rasgo de esperança e as nuvens podiam ainda dissipar-se de uma vez. Nesse preciso segundo, o seu coração parou para sempre e aquela tinha sido a sua última bebida. Ali ficou, no canto, ignorado pelos seus comparsas, que só se aperceberam mais tarde do sucedido. Quando se aperceberam que o sorriso na cara daquele homem era do tamanho do mundo...

(Escrito a 5 de Novembro de 2008)

3 comentários:

Patricia Dias disse...

:) Adorei reler estas palavras. Espero que as que se seguem apareçam muito em breve.

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(temos conseguido reduzir o número de páginas brancas do caderno?)

Nuno Guronsan disse...

O regime de exclusividade continua de pé. E sim, aos poucos as páginas brancas vão sendo reduzidas...

Beijos.

Patricia Dias disse...

:D Estou ansiosa por espreitar novamente nessas folhas.

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