E eis que de facto o mundo parece chegar ao seus últimos dias. O sinal evidente é dado pelos não-vivos. Fartos dos seus sepulcros, dos vermes como única companhia, e do peso de toda aquela terra sobre os seus ossos, a sua paciência atinge o limite. Não compreendem o porquê de não poderem andar à face da terra, como os vivos, apenas pelo facto de o seu coração já não bater e de o seu sistema respiratório já não consumir oxigénio há muito tempo. Quando muito e tendo em conta os tempos que correm isso seria uma enorme vantagem. Com esta constatação, os cádaveres, termo tão depreciativo este, decidem que está na altura de sairem dos seus buracos e terem direito a caminharem neste mundo, de verem por si próprios como está o planeta do qual apenas só conhecem o seu pedacinho de solo, morada dita eterna. Os vivos parecem não compreender muito bem esta curiosidade latente de quem não respira, já que perante as visões dantescas (termo melodramático do qual só os vivos se lembrariam) de pedras tumulares abertas e gavetões vazios, fogem e gritam como se estivessem a ser invadidos por alienígenas cinematográficamente maléficos. Os mortos, um pouco encandeados com tanta luz depois de anos, décadas e séculos de escuridão, não compreendem estes seres vivos tão aterrorizados. Afinal de contas, na maior parte dos casos, o seu aspecto não é assim tão repulsivo. E afinal de contas, quem são eles para os julgar, experimentassem uns quantos anos sem direito a banhos, maquilhagens ou cirurgias plásticas, e veriam que o aspecto exterior é demasiado sobrevalorizado. Os não-vivos percebem perfeitamente, qual iluminação religioso-espiritual, que o que conta é o que temos dentro de nós. Seja esse interior preenchido pelos respectivos orgãos vitais ou não, é o nosso interior que nos define, respiremos ou não. E exactamente por esta razão, e depois de alguns dias vagueando pelo planeta, afugentando os vivos e mesmo criando espirais de pânico pouco compreensíveis, os não-vivos chegam a uma conclusão tão inacreditável que os deixa de queixo caído (ou nalguns casos efectivamente de maxilar caído no chão). Este mundo é pior do que aquele que deixaram aquando da sua descida aos solos. Tudo está pior. Nada mudou para melhor e os mortos vêm-se confrontados com a terrível conclusão que ali não há nada para eles. Os vivos que fiquem com aquele mundo imprestável. Do seio dos não-vivos, emerge um profeta, de ossos praticamente limpos de carne mas com enorme sabedoria. É dele que parte o apelo para o regresso às suas moradias sepulcrais. Todos saudam esta iniciativa, estranhamente unindo vivos e mortos à volta deste parecer. E é assim que os não-vivos iniciam o seu lento regresso aos cemitérios, fechando as suas campas e deixando atrás de si um mundo verdadeiramente putrefacto, digno de todos os vivos que o habitam. Lentamente, muito lentamente, as cancelas dos cemitérios se vão fechando para nunca mais se abrirem ao mundo exterior. O último a fechar a porta é o profeta, enquanto lança um último olhar lá para fora, para a parede onde deixou a sua última profecia, uma espécie de postal de boas-vindas para todos os vivos.
7 comentários:
Muito Bom :)
Obrigado, SK. Um elogio teu é sempre bom de ouvir, ou não fosse eu também um leitor ávido das tuas palavras.
Abraço.
Hoje uns colegas de trabalho descobriram também um pouco de sabedoria escrito numa parede. Dizia qualquer coisa como: "Ser ranhoso é feio - O Morto".
Desafio-te a encontrares esta frase e a fazeres um texto tão bom como este que nos deixaste aqui.
;)
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Esse filósofo de parede tem muita coisa escrita em muitos sítios. Por enquanto ainda só fotografei duas, mas ainda quero encontrar mais. Escrever mais textos sobre as suas filosofias... quem sabe...
Podes mandar-me uma foto dessa parede "ranhosa". ;))
Beijos.
qual ranhosice, qual carapuça? já vos digo o que é poesia de rua: os optimistas andam aí!
Vê lá se tiraste uma foto...
Pffff...
:)
andas desactualizado. guloso, mas desactualizado.
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