quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Entrudo

Aquela era a sua altura preferida do ano. Somente naquela altura sentia uma sensação de liberdade e pertença como em nenhuma outra época de cada ano que passava da sua miserável vida. Apenas naqueles dias de folia podia passar despercebido nas ruas, passando entre pessoas que de outra forma não passariam nem a cinco centímetros de si, ou se o fizessem seria com uma expressão de asco ou receio estampada no seu rosto. Mas naqueles dias nada disso sucedia, deixava de ser um recluso da sua casa e deixava que o vento soprasse na sua face tapada, algo que já o deixava minimamente feliz, longe da exclusão que sentia no resto do ano. E era tão fácil, apenas precisava de uma máscara, uma peruca, até mesmo alguma maquilhagem, tudo pormenores carnavalescos, mas que para ele eram vitais para cumprir a sua encenação de pessoa perfeitamente normal. Este ano tinha optado, mais uma vez, pelo seu disfarce fétiche, aquele que, quase ironicamente, era o seu melhor "amigo" e que fazia com que a sua situação fosse menos real e um pouco mais teatral. Seria, mais uma vez, o Fantasma da Ópera. Quando se cruzasse com outros mascarados nas ruas e vielas da sua cidade, o seu sorriso seria, como sempre, de puro deleite ao pensar na suprema ironia que era vestir aquelas roupas, usar aquele chapéu e, principalmente, aquela máscara branca que apenas tapava parte da sua cara, exactamente aquela parte que se encontrava horrivelmente disforme e sem qualquer rasto de que alguma vez tivesse sido um rosto humano. Enquanto se preparava para colocar a sua máscara, não conseguia evitar um último olhar na direcção do seu reflexo no espelho e constatar que sim, o seu rosto continuava com aquele ar grotesco e que a qualquer momento os ossos da sua face iriam perfurar aquilo que ainda restava de pele, mutilando-o ainda mais e tornando toda aquela massa confusa de carne em algo ainda mais repugnante. No último segundo tinha-se lembrado das lentes de contacto coloridas, sabia que havia pessoas que se afastavam com a simples visão dos seus olhos. Aqueles olhos espectrais, com um cinzento que coloria a quase totalidade dos globos oculares, apenas com um pontinho preto pequeníssimo no centro. Aqueles olhos que lhe davam um aspecto bizarro e invisual, quando na verdade a sua visão sempre tinha sido perfeita, excluíndo a estética quase defunta da mesma. Nem mesmo naquela altura de disfarces excêntricos, os seus olhos passariam despercebidos. E ali estava ele, o Fantasma, devidamente pronto para correr as ruas, para sentir as pessoas próximas de si, sem medos interiores, para sentir a vida que andava lá fora, sem ter de andar pelos becos mais escuros ou pelas ruas menos movimentadas. Não, hoje era Carnaval e o céu era o infinito. Quem sabe se até não poderia conhecer alguém interessante, alguém que se deixasse seduzir pelos seus gestos teatrais, pela sua capa esvoaçante, ou pela sua máscara enigmática. Sabia que tudo isso era possível, a partir do momento em que a sua face estivesse escondida de olhos alheios. Sim, iria conhecer uma mulher deslumbrante, encantá-la com as suas palavras emotivas de quem reencontra novamente a sua liberdade, beijá-la docemente como quem saboreia um néctar há muito desejado, e finalmente levá-la para o seu apartamento e descobrirem os seus corpos nos lençois da sua cama. Mas sem nunca tirar a máscara, claro. Isso era algo que estava reservado para o momento final da sua "actuação". O momento em que as suas mãos começariam a apertar levemente o pescoço dela, quando a sua respiração começasse a ser mais espaçada e com enormes inspirações a tentarem ganhar o máximo de ar possível. Só nessa altura, quando ela já soubesse o destino que a aguardava, apenas aí ele retiraria a máscara e deixaria que o horror da sua cara disforme invadisse o olhar da sua vítima, apertando-lhe o coração inundado de horror, enquanto o seu último suspiro ecoava no quarto. Sim, seria assim que tudo se passaria, mais uma vez. Olhou para o relógio. Era tarde, já era tempo de estar na rua, com os outros mascarados. Não podia ficar perdido, a pensar em Carnavais passados, em mulheres passadas. Estava na hora dos foliões e ele queria ser mais um, mergulhado no seio de toda aquela massa anónima. Disfrutanto da sua liberdade por mais um ano...


2 comentários:

PenaBranca disse...

que filme! para quê inventar mais?

Abssinto disse...

Imaginativo. Espero que este ano também tenha aproveitado o tempo de Entrudo da melhor maneira...a "sua maneira".