segunda-feira, fevereiro 04, 2013

"Do mal o menos"

Já muitos me tinham falado naquele livro. Que era excelente, que eu tinha de o ler, que assim que lesse a primeira página já não o conseguiria pousar sem chegar à última das frases lá escritas. Por isso a expectativa estava criada e colocada em patamar altíssimo. Aproveitei um fim-de-semana com mais um dia para me agarrar à anunciada leitura. Sentei-me no meu banco de jardim predilecto, protegido pelos céus azuis intermináveis e aquecido pelo sol primaveril fora de estação. Li a dedicatória, "Para a Paula, que me inspira todos os dias". Depois de tantos anos, consegui achar graça à coincidência e virei a página. Capítulo um. Ao fim de alguns parágrafos, compreendi o porquê de toda a gente que eu conhecia me dizer que ia gostar do livro. A forma, o estilo, a cadência das palavras, tudo escrito num ritmo avassalador, sem barreiras nem descontos de tempo, todas aquelas páginas iam ao encontro daquilo que me agradava num livro. O autor, quase um desconhecido para mim, escrevia bem e sabia contar uma história com alma, com paixão, com tudo aquilo que um livro deve ser. Continuei a ler, as páginas sucediam-se sem eu dar conta, deixei passar a hora da refeição, continuava sentado no banco de jardim, o livro era o meu repasto naquele momento. Capítulo dez. Estranho. Havia um sentimento de familiaridade que atravessava aqueles capítulos, aquela história, algo que me perturbava mas que me instigava a continuar a ler. Até que cheguei àquele capítulo, e aí tudo se tornou horrivelmente claro. Naquele capítulo todas as peças se encaixaram e tudo fez sentido na minha cabeça. É claro que a história lhe era familiar, pois se aquela era a minha história. A história de três anos da minha vida, três anos que eu tinha enterrado no mais fundo do meu cérebro, três anos que apenas me traziam amargos de boca e dores desnecessárias ao coração. Os nomes eram outros, os sítios tinham mudado de país, as paisagens eram geograficamente as mesmas. A casa estava reproduzida ao mílimetro, as horas estavam ali, irrevogavelmente presas nas folhas daquele livro. Tudo se tinha passado daquela forma, e agora já não havia muitas dúvidas sobre quem era a Paula da dedicatória. Restava, então, mais aquela humilhação, a última lâmina a encontrar o caminho para as minhas costas. Tanto tinha lutado para deixar aquele período da minha vida perdido nas teias do passado e agora ele entrava de novo, de rompante, na minha vida, imperdoavelmente deixando-me novamente de rastos. Tentei convencer-me que ela não podia ter feito aquilo, expôr a nossa história para todo o mundo a ler, a conhecer, a devorar enquanto best-seller. Mas era inútil, o mal estava feito, nada faria o tempo voltar atrás para que pudesse impedir a publicação da minha história. Minha e da Paula. Nada restava. Levantei-me do banco de jardim e apertei o casaco, afastando de mim o vento de final de tarde que varria o jardim. Peguei no livro e, discretamente, deixei-o cair na papeleira ao lado do banco. Ficaram ainda muitos capítulos por ler. Não precisava de o fazer, sabia exactamente como a história acabava. Sabia perfeitamente quais seriam as palavras que apareceriam antes do derradeiro ponto final. Já conhecia o fim. Já tinha vivido o fim. Não o queria, de forma alguma, ler mais uma vez. Basta. Ganhaste. Só quero chegar a casa o mais depressa possível. Antes que o sol se ponha.


4 comentários:

PenaBranca disse...

e fizeste tu muito bem.
rijo abracete, mesmo que à distância.

Nuno Guronsan disse...

A distância somos nós que a fazemos ou desfazemos :))

Abracete de volta!

o (regressado, mas nunca perdido...) anónimo do costume disse...

É o que faz pores-te a ler o Pedro Paixão (post anterior)... depois a tua prosa também resvala para o "depressivo"... ;-)

Nuno Guronsan disse...

Não acho assim tão depressivo, meu caro anónimo. De qualquer maneira, este post encaixado entre palavras do Pedro é apenas uma casualidade, pois este escrito já estava a preparar-se há algum tempo.

Obrigado pelos teus contínuos regressos. Um abraço e cumprimentos à anónima e ao pequenino anónimo do costume :))