(a dobrar)
quinta-feira, fevereiro 14, 2013
Ali ao lado...
Pela calçada acima, segue ela mais uma vez, pequenina e curvada sobre si mesma. Nas suas roupas negras, luto que se lhe continua a agarrar, eterna lembrança daquele que perdeu para não mais voltar à sua casa. Caminha lentamente, o tempo não a preocupa há muito, deixa-se ir iluminada por um sol teimosamente primaveril sob céus ainda invernais. Os cabelos brancos, arranjados em pequenos caracóis, deixam pequenos vestígios do que em tempos foi a sua beleza, agora vergada pelos muitos anos de vida e trabalho na lavoura. Os pequenos óculos redondos de aros também pretos, por trás dos quais se escondem olhos côr de avelã, onde tantos e tantos pretendentes se perderam na sua adolescência, mesmo quando ela já sabia perfeitamente a quem pertencia o seu coração. Ao longo da sua face e das suas mãos, as rugas são sentinelas atentas à passagem do tempo, rearrumando aquilo que foi suavemente belo para um outro tipo de beleza, aquela que apenas as pessoas de uma idade avançada nos conseguem mostrar sem receios ou desculpas. Nas suas mãos leva um pacote de sementes compradas no dia anterior na última loja resistente no seu bairro. Palavras que ela mal entende, de tão económicas se tornaram, varreram todas as outras lojas e os seus proprietários, indo alguns para tão longe que até as fronteiras deste país acabaram por passar. Quando a última loja se fôr, não sabe onde irá comprar as sementes para os seus companheiros. Aqueles que agora começam a esvoaçar em direcção ao chão que a rodeia. Que descem dos céus para a saudar, a sua benfeitora, a sua única companhia humana. Quase se podia acertar o relógio da torre da igreja matriz por estes encontros vespertinos. Tanto ela, como os pombos que agora se vão chegando aos seus pés, sempre se encontram ali, no passeio à volta do jardim, todos os dias, sempre na mesma hora. E ela deixa cair as primeiras sementes que, mal aterram na calçada, servem de manjar aos seus amigos alados, num ruído misto de asas esvoaçantes e arrulhares de estômagos satisfeitos. Ela sorri. No meio das rugas um sorriso de contentamento pelos seus companheiros. Os vizinhos já a avisaram inúmeras vezes para se deixar de dar comida aos pombos. Que não é higiénico, que aqueles pássaros só trazem sujidade e doenças. Que qualquer dia chamam a gnr. Ela que se deixe disso. Ela não faz caso. Conhece alguns desde os tempos em que eram uma pequena amostra de gente e já sabe que aquela gente já vem de más raízes. Isto nos mais novos. Os vizinhos mais velhos, os da sua idade, também já deviam ter idade para ter juízo e não lhe dizerem aquelas tolices, a ela que é uma das moradoras mais antigas do bairro. Ela faz ouvidos de mercador. Não lhes liga e, para ser franca, com a idade dela, já não tem que se preocupar com ameças fúteis daquelas. Ainda gostava de ver qual era o agente da polícia com tomates para a levar por um braço. Deixá-los falar, mais dia menos dia ela já não vai ter de os aturar. E ela sabe perfeitamente que os pombos não passam o dia a rondar e a sujar o bairro, eles apenas aparecem quando ela sai para a rua, com o pacote de sementes nas suas mãos velhinhas. E durante aqueles minutos em que as sementes duram e ela se vê rodeada dos seus pequenos companheiros de penas, o sorriso toma conta de si, e a solidão é atirada para um canto, e a vida até parece suportável. Durante aqueles minutos, sente-se amada e importante e, ousa mesmo dizê-lo para si, vagamente feliz. Feliz como há anos não o é. Desde que ele a deixou, partiu primeiro para o outro lado, deixando-a entregue a uma casa vazia e a um mundo que nunca mais teve o mesmo significado. Mas os pombos compreendem a sua mágoa e, ainda que não o percebam, são as suas melhores amizades, os seus companheiros de luta, contra todos aqueles que não percebem a verdadeira amizade, o verdadeiro amor. Contra aqueles que não suportam ver quem seja mais feliz que eles próprios, por muito ínfima que essa felicidade seja. É por isso que ela todos os dias vai à loja e compra as sementes. É por isso que ela, pequenina e curvada sobre si mesma, vai ao encontro dos seus companheiros todos os dias. E assim o irá sempre fazer, até que o seu mundo acabe, até que os seus dias corram o seu curso, até que o seu corpo decida que é tempo de ir ao reencontro do seu amor. Assim ela o reza, todos os dias, antes de sair à rua.
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1 comentário:
Comoventemente belo! Como o são todas as histórias de amor...
Gostei tanto!
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