quarta-feira, outubro 24, 2012

Molha

Dia de chuva. E enquanto o carro rodava pelos paralelipípedos da cidade, e as escovas funcionavam no máximo, veio-me à memória uma recordação longínqua de um outro dia chuvoso. Não devia ter mais de onze anos. Torneio de futebol na escola. Nada de relvados nem sintéticos, apenas um campo de gravilha acimentada (não consigo arranjar melhor descrição). O dia até tinha começado com sol e nada de frio, de modo que me lembro que todos nós jogávamos de calções e camisas de manga curta. Lembro-me de alguns com camisas oficiais dos clubes do seu coração e lembro-me de outros com t-shirts compradas na praça. Lembro-me de ter jogado à baliza. Sei que defendi alguns remates e sei que deixei entrar outros tantos. Não sei quanto ficou o jogo, se ganhámos ou se perdemos (nunca havia empates), e sei que ficou um joelho esfolado, com riscos de sangue pisado e escuro. O que me lembro realmente bem é que durante o jogo começou a chover. A princípio umas gotas tímidas e com pouca vontade de molhar mas que rapidamente se foram juntando para acabar com o nosso jogo. Até que às tantas estávamos a jogar com um dilúvio a cair sobre nós. A chuva era tão cerrada que às vezes nem conseguia ver quem levava a bola, se nós se os da outra equipa. Mas nós continuávamos a jogar, por mais poças de água que houvesse no campo, por mais gente que largasse das bancadas a correr para abrigos secos. E nós continuávamos a correr e atirarmo-nos para o chão, gravilha e água a agarrar-se aos nossos corpos. Até que me lembro de um dos contínuos vir interromper o jogo, a gritar para irmos para os balneários, para nos irmos embora que nesse dia não haveria mais jogos. E nós, refilando e barafustando com aquele que era o maior (único?) adepto do Belenenses naquela escola, lá fomos para dentro de portas, procurando os chuveiros quentes. Mas nesse dia não havia mais aulas. E, para não variar muito, também não havia água quente. O cilindro devia ter ido ao ar mais uma vez. E a partir daqui não me lembro se todos nos decidimos pelo passo seguinte ao mesmo tempo, ou se foi ideia de algum apenas, ou se foi daquelas coisas em que não precisávamos de falar uns com os outros. O certo é que simplesmente aconteceu. Todos pegámos nas nossas mochilas e, sem trocarmos de roupa e ainda equipados, fomos para a rua, para o meio da chuva, em direcção às nossas casas. Foi das maiores molhas que apanhei até hoje. Ainda que fossem apenas uns quinze minutos a pé até à maior parte das nossas casas, ficámos encharcados até aos ossos e, enquanto passávamos pelas pessoas de chapéu aberto que procuravam o interior dos passeios, ríamo-nos e ríamo-nos, uma vezes a correr, outras á espera das ondas de água provocadas pelos carros que passavam. E ríamo-nos mais um pouco, e recordávamos os passes e os golos e as defesas do jogo. E a chuva, que continuava a cair impiedosamente, não apagava os nossos sorrisos e as nossas cumplicidades. E enquanto cada um ia chegando ao seu destino, lá nos despedíamos, até amanhã, trazes tu a bola?, sim, não te esqueças dos apontamentos de inglês, ficaste de me trazer uma banda-desenhada, ok, e lá seguíamos caminho, certos de que quando chegássemos a casa iríamos ouvir os ralhetes da nossa vida, ainda que ao mesmo tempo viria a toalha mais macia para nos secar o esqueleto. E agora que estou quase a chegar a casa e a chuva vai dando lugar a uns raios de sol desfocados, lembro-me dos nomes. Do Jorge, do Bruno, do Hilme, dos gémeos. De como juntos tínhamos os momentos mais felizes das nossas vidas e que nenhuma chuva torrencial conseguia dobrar-nos o espírito. Sabe bem voltar lá atrás e reviver estas pequenas memórias...


2 comentários:

Nuno Cruz disse...

Os adeptos de Belenenses são sempre os maiores...

Nuno Guronsan disse...

Aquele era, sem dúvida, Nuno.
Lembro-me de ele estar sempre a tentar os putos da escola, a ver se os convertia ao Belém :))