sábado, dezembro 04, 2010

História verídica, com alguma imaginação pelo meio

- Pai...
- Diz, filho.
- Porque é que a tua pele neste lado do braço tem rugas?
- Isto? Nunca te contei como é que isto ficou assim?
- Não, nunca me disseste. Conta.
- Bom, isto já aconteceu há quase dez anos atrás. E tudo por causa das farturas.
- Aquelas que tu fazes aos domingos?
- Sim, essas mesmas.
- Mas já fazes farturas há tantos anos assim?
- É verdade. O tempo passa tão depressa que às vezes nem damos conta e já lá foram dez anos. Não devia ter muitos mais anos do que tu quando apareceu a ocasião de me tornar um artesão da fartura, como eu gosto de dizer.
- Mas continuas a ser pintor de carros, não continuas, pai?
- Claro que sim, filho. Mas só durante a semana e só porque gosto do que faço e só porque temos de ter outra coisa que pague as contas para lá das farturas. Coitadas, já se venderam muito mais do que agora...
- Não digas isso, pai, que quando saio da missa e passo em frente à tua roulote, estás sempre rodeado de gente, velhos e novos. Até estrangeiros já lá vi!
- Pois é. Felizmente ainda tenho os meus clientes de sempre e a aldeia ainda vai tendo uns quantos turistas a passar por cá e que acham muita piada às minhas farturas...
- Mas ainda não me disseste como aconteceram as rugas.
- As rugas... Bom, isso aconteceu se calhar por falta de experiência minha, não sei. Ainda nem sequer tinha passado um mês desde que tinha comprado a roulote à Dona Rosa.
- Quem era a Dona Rosa, pai?
- Era uma senhora muito simpática e trabalhadora. Havias de a ter conhecido. Foi amiga da nossa família durante muitos e muitos anos. E sempre que havia uma churrascada daquelas que nós fazemos, com a familia toda junta, a Dona Rosa era sempre convidada e aparecia sempre com muitas farturas para pequenos e graúdos. Era sempre uma festa.
- Mas isso quer dizer que ela também sabia fazer farturas?
- Claro que sim. Foi a Dona Rosa que me ensinou tudo sobre farturas, como as fazer assim tão deliciosas. E foi ela que me vendeu a sua roulote durante uma das churrascadas. Nesse dia a Dona Rosa estava a contar-nos que mais dia menos dia ia ver-se livre da roulote. Ela não tinha filhos nem familiares interessados em continuar o negócio e estava a ficar muito velha para estar ali ao ar livre, todos os fins-de-semana. E então perguntou-nos se conhecíamos alguém interessado em comprar a roulote.
- E tu disseste logo que a querias? Porquê?
- Não, filho. Eu estava a ouvir a história como tu também agora a ouviste. E foi o teu tio António que se virou e disse "aqui o João é que era homem para comprar isso, Dona Rosa! O problema é que ele ia passar o tempo todo a comer as farturas!", e desatou numa daquelas gargalhadas à tio António.
- Ficaste chateado, pai?
- Não, filho. Sabes bem que eu gosto muito do teu tio e das tiradas dele. Não, eu apenas disse à Dona Rosa, "você sabe que eu gosto muito das suas farturas e não me farto de a ver a fazê-las. Mas não tenho nem dinheiro para lhe comprar a barraca nem sei fazer farturas como a senhora." Tens de ver, filho, que na altura em que isto aconteceu eu tinha acabado de me casar com a tua mãe e ainda estava à experiência na oficina. Mal nos sobrava dinheiro ao fim do mês...
- E o que é que a Dona Rosa disse?
- Bom, ela começou por me perguntar se tinha mesmo interesse em aprender a fazer farturas, e eu disse-lhe que sim. E ela abriu muito aqueles olhos lindos que ela tinha e disse logo que o dinheiro para comprar a roulote não era problema, que eu ia pagando aos poucos, com o que fizesse nos primeiros domingos em que a utilizasse. E depois, quase sem esperar que eu respondesse, ficou logo combinado que no domingo seguinte eu iria com ela para a roulote, onde ela me ia ensinar todos os segredos e manhas de uma boa fartura. E foi mais ou menos assim que acabei por ficar com a roulote. Tive a companhia da Dona Rosa durante uns três, quatro domingos, ela ensinou-me tudo o que havia para me ensinar, e a partir daí deu-me as chaves para a mão, deu-me um beijo e disse que sempre ficaria agradecida por eu ter aparecido na sua vida e continuado a sua arte.
- E as rugas? E as rugas?
- É verdade, já me estava a esquecer. Isso aconteceu quando já fazia as farturas há um par de meses. Na verdade, ainda estou para saber o que aconteceu, porque o mais normal numa roulote de farturas é uma pessoa ficar queimada com o óleo, mas não foi por causa disso. Estava a mudar a bilha do gás, que na altura ainda ficava dentro da roulote, e ainda devia ter um restinho de gás que acabou por inflamar. A única coisa que pensei quando me atirei para a frente com os braços foi que a tua mãe estava ao meu lado. E quando voltei a pensar novamente, tinha os braços quase todos queimados.
- A sério? Mas eu nunca reparei em nada. Só nestas rugas pequeninas que aqui tens...
- Pois é. A coisa podia ter corrido muito mal. Mas sucederam-se uma série de pequenas coisas boas que ajudaram a que não ficasse com muitas cicatrizes. Primeiro a tua mãe colocou logo os meus braços numa bacia com muita água fria, enquanto conduzia o carro a toda a velocidade para o hospital na cidade.
- A mãe? A conduzir a mais de 60 à hora?
- A sério. Acho que nunca mais a vi a guiar tão depressa. Quando chegámos ao hospital, mesmo com a água fria, já havia partes dos meus braços onde a pele tinha caído e outras onde havia enormes bolhas. Felizmente fui atendido por uma médica espanhola extremamente competente, que tinha chegado à cidade há umas duas semanas. Ela foi muito atenciosa e cuidou de mim da melhor maneira possível, deu-me uma pomada para colocar nos braços e enfaixou-mos muito bem com não sei quantos pensos e compressas. E disse-me para voltar na semana seguinte.
- E depois, pai?
- Bem, já sabes que sou um bocado assim para o desenrascado. Por isso, estive muito atento à maneira como a enfermeira ia fazendo os pensos, de maneira que, quando voltei a casa e durante essa semana, fiz a mudança dos pensos uma série de vezes, sempre aplicando a pomada como a doutora me tinha explicado. Quando lá cheguei para a consulta, a médica nem quis acreditar, pois os braços estavam quase, quase como novos, apenas restanto algumas bolhinhas nesta zona onde ficaram as rugas. Contei-lhe o que tinha feito e ela ficou tão impressionada comigo que, mesmo hoje, quando nos cruzamos na cidade, ela faz-me uma grande festa e fala sempre nas minhas queimaduras que até parece que nunca aconteceram. E olha que já passaram quase dez anos...
- Caramba! E pensar que nunca me tinhas contado essa história...
- Nunca me tinhas perguntado. E não é uma história assim tão interessante...
- Isso dizes tu. É uma grande história. Alguém devia passá-la a um livro ou assim...
- Ora. Como se alguém estivesse interessado em ler sobre farturas e queimaduras e afins... Olha, filho, vou mas é deitar-me que amanhã é dia de fazer farturas e algo me diz que vai estar sol e vou ter muitos clientes...
- Fazes muito bem. Não te esqueças de guardar uma para mim, como de costume.
- Claro que não me esqueço, filho. Boa noite.
- Boa noite, pai. Dorme bem.




(Pequena homenagem a alguém que nos tratou de forma tão simpática e humilde e que tornou um dia já de si muito bom num dia verdadeiramente inesquecível. Um grande bem haja e um destes domingos passo novamente por aí para comer uma fartura. E quem sabe mostrar-lhe estas palavras, ainda que falhas de alguma veracidade. Mas acho que o essencial está cá.)

6 comentários:

PenaBranca disse...

farturas são sempre boas, desde que quentes e pequenas (mais saborosas; as grandes ficam para os gulosos)... e comidas ao sol quente é um alegrete.

Nuno Guronsan disse...

:)

Haja alegrias!

Sónia da Veiga disse...

Não sou fã de farturas, mas adorei a história e acho muito bem que fique imortalizada aqui!

E parabéns ao senhor das farturas, por ser tão feliz a fazer o que faz, o que é raro hoje em dia...

Felicidade disse...

Sorrindo ao decorrer da leitura deste pequeno texto mesmo que com alguma da tua deliciosa imaginação á mistura....reporta-nos mesmo a um diálogo maravilhoso entre pai e filho com lingua de perguntador, que caracteriza por si só uma criança, podendo ser mais acentuado nuns.....fez-me transportar para uma que assisti e que nunca me irei esquecer na vida, no qual com apenas 5 anos estava num "drama" pois a "namorada" tinha o trocado pelo melhor amigo.....eu fiquei de platei a saborear toda a conversação absorvendo cada palavra, cada reacção, cada explicação, cada pergunta.....
São bons momentos que nos fazem mesmo absorver e sorrir.........
Que existam muitos senhores de farturas!!!!!!!!!!

Um beijo especial meu querido

Nuno Guronsan disse...

Obrigado pelas simpáticas palavras, SDaVeiga. Fico contente que o tempo que perde neste espaço seja bem passado. :))

Bem haja!

Nuno Guronsan disse...

Minha querida felicidade, a história provavelmente não tem tanta imaginação como possas pensar (mas isso só o PenaBranca poderá confirmar :), mas ainda bem que gostaste. E se calhar a parte do pai e filho deve ser algum desejo recalcado de parentalidade que por aqui anda... :))

Mas sim,o essencial, diria eu, é que haja mesmo muitos seres humanos como o senhor das farturas, para ver se ainda há esperança de redenção para a nossa espécie...

Beijos grandes. Com muitas saudades.