Estava sentado a ver todos a fugirem. Dali conseguia ver tudo. A ponte completamente congestionada, carros e mais carros carregados de pessoas que tentavam fugir para o sul, em direcção à fronteira. Seria também esse o destino dos comboios que ao longe ouvia, o som da partida de cada vez que um arrancava, carruagens cheias, atulhadas de malas e pessoas e tudo o mais que não estivesse agarrado ao chão. E os aviões. Um após outro, com intervalos de tempo cada vez mais curtos entre partidas. Apenas partidas. Era estranho ver os aviões apenas afastarem-se do chão e nenhum deles aproximar-se da pista, como tantas vezes tinha ficado a ver da sua janela. Agora apenas os via partir. Não faltaria muito até que todos os aviões tivessem partido e o aeroporto ficasse vazio. Não haveria mais aviões, nem passageiros, nem trabalhadores, nem pilotos, nem malas, nem seguranças, nada, o aeroporto ficaria tão vazio que até as luzes da pista seriam apagadas, deixando o vazio mergulhado na escuridão para sempre. Qualquer ideia para um novo aeroporto, discussão que parecia já ter décadas e décadas, ficaria finalmente resolvida, pois nunca mais haveria necessidade de tal empreendimento. Desde o momento em que as altas instâncias políticas do país tinham feito o dramático anúncio, todos os problemas económicos, sociais, culturais, religiosos, enfim todas aquelas questões que enchiam os telejornais como balões de ar quente, tudo tinha ficado resolvido. Não mais se falaria do défice, do desemprego, da liberdade de imprensa, dos famosos, de Fátima, do nosso fado, do futebol, da selecção, tudo ficava arrumado ou, mais apropriadamente, enterrado. Assim voava a sua mente, ali com ele sentada, enquanto os últimos aviões também voavam, fugindo atabalhoadamente de um espaço aéreo cujos céus azuis celebravam as suas últimas horas de existência. E mesmo com todo este êxodo, não havia pânico. Da parte dele certamente que não, ou não continuasse ele ali sentado, no seu jardim preferido, observando atentamente todas aquelas coisas que ainda o rodeavam. Mas mesmo nos olhos de todas as pessoas que agora faziam a sua viagem para fora do país, nos seus gestos, na sua ânsia por um sítio que não estivesse condenado, não havia pânico. Na verdade, parecia algo natural, algo que inevitavelmente teria que acontecer, ou que já podia ter acontecido, mas que estava a acontecer agora, neste preciso momento. Ele quase conseguia visualizar as pessoas diante dos seus aparelhos de televisão, avisadas para a declaração anunciada, sem saber o seu conteúdo, sentadas enquanto o juízo final do país era relatado em frases analíticas e por faces cinzentas. Conseguia vê-las a lentamente desligarem os televisores, dirigirem-se aos quartos, fazendo as malas com aquilo que achavam serem os bens essenciais para a sua viagem, deixando tudo o resto para trás, desligando a água, o gás e a electricidade, como se apenas fossem de férias, como se para a semana estivessem de regresso a casa, e calmamente encaminharem-se para os seus carros, os seus autocarros, os seus comboios e para os seus aviões, caso tivessem a felicidade de possuirem o dinheiro suficiente para fazer face aos aumentos de 500% que se fizeram sentir no preço dos bilhetes assim que a declaração política tinha sido emitida. E com essa mesma tranquilidade, as cidades, as vilas e as aldeias do país foram começando a ser drenadas dos seus habitantes, movimentações massivas de pessoas que na sua grande maioria se dirigiam para a única fronteira terrestre que o país mantinha. Havia até quem pegasse nos seus barcos de pesca ou de recreio e se aventurasse em direcção ao mar, numa reedição de venturas passadas, ainda que agora a procura de novas terras se desenrolasse num pano de fundo de necessidade de sobrevivência e sem expectativas de regresso àquelas costas marítimas que em breve apenas fariam parte da memória colectiva de um povo que também ele seria uma realidade nos livros de história que porventura poderiam estar perdidos nas bagagens de uns quantos. Tantos séculos depois, o povo era devolvido novamente ao mar. Ou deveria dizer-se expulso para o mar? A ideia provocou-lhe um sorriso, algo que ele achou estranho. E não devia também ele estar a fugir? Não devia ele, por exemplo, estar num dos aviões militares que cruzavam os ares naquele momento, juntamente com outras centenas de pessoas que o exército tinha conseguido salvar? Não devia ele estar no meio daqueles homens, mulheres, crianças, idosos, políticos, carpinteiros, empresários, apresentadores de televisão, canalizadores, mecânicos, engenheiros, doutores, professores, engenheiros, militares, todas aquelas pessoas cuja única coisa que partilhavam era uma nacionalidade, uma identificação com uma terra onde tinham nascido, vivido e quase morrido, uma ligação quase inconsciente com pouco mais de noventa mil quilometros quadrados de uma terra que tinha agora apenas algumas horas mais de existência? Porque razão não se juntava ele aos milhões que agora já nada queriam com um terra prestes a cair num término sem volta? Não era por falta de crença naquele fim, ele sabia que as coisas apenas podiam acabar daquela forma, no seu íntimo sempre o soubera, pois não há nada que dure para sempre. Apenas sentia uma pontinha de incredibilidade por ver que o fim acontecia durante a sua existência, mas o que é que se podia fazer realmente? Acabou, está acabado. A questão era porquê ficar ali, sentado num banco de jardim, a fumar os últimos cigarros do seu último maço, a ver os grandes pássaros de metal voarem dali para fora, a ver o engarrafamento na ponte, não muito diferente de um dia normal de semana. Não queria fugir. Não queria passar a fronteira. Não queria voar para uma ilha paradisíaca num pacote de sete dias e oito noites. Nada disso. A única coisa que alguma vez o tinha feito feliz era aquele país. Ali tinha sentido as suas maiores alegrias e tinha sido atormentado pelas maiores tristezas. Nunca conseguiria escapar a tempo, é claro, muito menos agora que já não havia alternativa possível. Mas ele não queria. Nunca conseguiria viver fora dali. Teria que começar tudo do zero. Um novo país, uma nova língua, uma nova moeda, um novo bilhete de identidade, um novo emprego, novos amigos, novos inimigos, não, nada disso era para ele. Não. Preferia ficar ali, no seu sítio, a observar a desintegração final do país e, com ele, a da sua vida. Tinha sido uma vida engraçada, nem demasiado comprida, nem demasiado curta. Poderia ter feito mais alguma coisa com ela, mas para quê? Sentia-se feliz com o que tinha feito e agora era tarde para estar a pensar em tudo o que não tinha feito ou o que podia ter feito de forma diferente. Não, isso era para aquelas pessoas que acreditavam em reencarnações e afins, elas podiam ficar com esses pensamentos enquanto voavam dali para fora. Ele contentava-se com o que tinha, dentro de si moravam todos os anos, os meses, os dias, as horas, os minutos e os segundos que tinha passado com os pés assentes naquela terra que em breve deixaria de existir. Aquele banco de jardim seria a sua última morada e seria mais do que suficiente. E elevou os olhos para o céu onde viu o último avião a fazer pela última vez aquele trajecto aéreo que ele tantas vezes tinha visto. Parecia ser um daqueles aviões que levam quase novecentas pessoas de uma só vez. E pôs-se a pensar se aquelas novecentas almas o conseguiriam ver ali, no seu banco de jardim, se achariam absurdo aquela pessoa ficar para trás, abandonado à sua sorte numa terra com fim a termo certo. Será que sentiam pena por ele? Ou será que achavam que cada um cava a sua sepultura, e que se era isso que ele queria, em breve o havia de ter? E ele sentiu-se, de repente, sozinho. Será que seria o único a ficar para trás? Não haveria mais ninguém a sentir-se como ele? Ninguém? Bom, teria que ser assim, nada havia a fazer, não havia mais tempo para nada. Talvez para mais um cigarro, não? "Olha, parece que não." Puff. Foi-se.
quarta-feira, junho 23, 2010
Planespotting
Estava sentado a ver todos a fugirem. Dali conseguia ver tudo. A ponte completamente congestionada, carros e mais carros carregados de pessoas que tentavam fugir para o sul, em direcção à fronteira. Seria também esse o destino dos comboios que ao longe ouvia, o som da partida de cada vez que um arrancava, carruagens cheias, atulhadas de malas e pessoas e tudo o mais que não estivesse agarrado ao chão. E os aviões. Um após outro, com intervalos de tempo cada vez mais curtos entre partidas. Apenas partidas. Era estranho ver os aviões apenas afastarem-se do chão e nenhum deles aproximar-se da pista, como tantas vezes tinha ficado a ver da sua janela. Agora apenas os via partir. Não faltaria muito até que todos os aviões tivessem partido e o aeroporto ficasse vazio. Não haveria mais aviões, nem passageiros, nem trabalhadores, nem pilotos, nem malas, nem seguranças, nada, o aeroporto ficaria tão vazio que até as luzes da pista seriam apagadas, deixando o vazio mergulhado na escuridão para sempre. Qualquer ideia para um novo aeroporto, discussão que parecia já ter décadas e décadas, ficaria finalmente resolvida, pois nunca mais haveria necessidade de tal empreendimento. Desde o momento em que as altas instâncias políticas do país tinham feito o dramático anúncio, todos os problemas económicos, sociais, culturais, religiosos, enfim todas aquelas questões que enchiam os telejornais como balões de ar quente, tudo tinha ficado resolvido. Não mais se falaria do défice, do desemprego, da liberdade de imprensa, dos famosos, de Fátima, do nosso fado, do futebol, da selecção, tudo ficava arrumado ou, mais apropriadamente, enterrado. Assim voava a sua mente, ali com ele sentada, enquanto os últimos aviões também voavam, fugindo atabalhoadamente de um espaço aéreo cujos céus azuis celebravam as suas últimas horas de existência. E mesmo com todo este êxodo, não havia pânico. Da parte dele certamente que não, ou não continuasse ele ali sentado, no seu jardim preferido, observando atentamente todas aquelas coisas que ainda o rodeavam. Mas mesmo nos olhos de todas as pessoas que agora faziam a sua viagem para fora do país, nos seus gestos, na sua ânsia por um sítio que não estivesse condenado, não havia pânico. Na verdade, parecia algo natural, algo que inevitavelmente teria que acontecer, ou que já podia ter acontecido, mas que estava a acontecer agora, neste preciso momento. Ele quase conseguia visualizar as pessoas diante dos seus aparelhos de televisão, avisadas para a declaração anunciada, sem saber o seu conteúdo, sentadas enquanto o juízo final do país era relatado em frases analíticas e por faces cinzentas. Conseguia vê-las a lentamente desligarem os televisores, dirigirem-se aos quartos, fazendo as malas com aquilo que achavam serem os bens essenciais para a sua viagem, deixando tudo o resto para trás, desligando a água, o gás e a electricidade, como se apenas fossem de férias, como se para a semana estivessem de regresso a casa, e calmamente encaminharem-se para os seus carros, os seus autocarros, os seus comboios e para os seus aviões, caso tivessem a felicidade de possuirem o dinheiro suficiente para fazer face aos aumentos de 500% que se fizeram sentir no preço dos bilhetes assim que a declaração política tinha sido emitida. E com essa mesma tranquilidade, as cidades, as vilas e as aldeias do país foram começando a ser drenadas dos seus habitantes, movimentações massivas de pessoas que na sua grande maioria se dirigiam para a única fronteira terrestre que o país mantinha. Havia até quem pegasse nos seus barcos de pesca ou de recreio e se aventurasse em direcção ao mar, numa reedição de venturas passadas, ainda que agora a procura de novas terras se desenrolasse num pano de fundo de necessidade de sobrevivência e sem expectativas de regresso àquelas costas marítimas que em breve apenas fariam parte da memória colectiva de um povo que também ele seria uma realidade nos livros de história que porventura poderiam estar perdidos nas bagagens de uns quantos. Tantos séculos depois, o povo era devolvido novamente ao mar. Ou deveria dizer-se expulso para o mar? A ideia provocou-lhe um sorriso, algo que ele achou estranho. E não devia também ele estar a fugir? Não devia ele, por exemplo, estar num dos aviões militares que cruzavam os ares naquele momento, juntamente com outras centenas de pessoas que o exército tinha conseguido salvar? Não devia ele estar no meio daqueles homens, mulheres, crianças, idosos, políticos, carpinteiros, empresários, apresentadores de televisão, canalizadores, mecânicos, engenheiros, doutores, professores, engenheiros, militares, todas aquelas pessoas cuja única coisa que partilhavam era uma nacionalidade, uma identificação com uma terra onde tinham nascido, vivido e quase morrido, uma ligação quase inconsciente com pouco mais de noventa mil quilometros quadrados de uma terra que tinha agora apenas algumas horas mais de existência? Porque razão não se juntava ele aos milhões que agora já nada queriam com um terra prestes a cair num término sem volta? Não era por falta de crença naquele fim, ele sabia que as coisas apenas podiam acabar daquela forma, no seu íntimo sempre o soubera, pois não há nada que dure para sempre. Apenas sentia uma pontinha de incredibilidade por ver que o fim acontecia durante a sua existência, mas o que é que se podia fazer realmente? Acabou, está acabado. A questão era porquê ficar ali, sentado num banco de jardim, a fumar os últimos cigarros do seu último maço, a ver os grandes pássaros de metal voarem dali para fora, a ver o engarrafamento na ponte, não muito diferente de um dia normal de semana. Não queria fugir. Não queria passar a fronteira. Não queria voar para uma ilha paradisíaca num pacote de sete dias e oito noites. Nada disso. A única coisa que alguma vez o tinha feito feliz era aquele país. Ali tinha sentido as suas maiores alegrias e tinha sido atormentado pelas maiores tristezas. Nunca conseguiria escapar a tempo, é claro, muito menos agora que já não havia alternativa possível. Mas ele não queria. Nunca conseguiria viver fora dali. Teria que começar tudo do zero. Um novo país, uma nova língua, uma nova moeda, um novo bilhete de identidade, um novo emprego, novos amigos, novos inimigos, não, nada disso era para ele. Não. Preferia ficar ali, no seu sítio, a observar a desintegração final do país e, com ele, a da sua vida. Tinha sido uma vida engraçada, nem demasiado comprida, nem demasiado curta. Poderia ter feito mais alguma coisa com ela, mas para quê? Sentia-se feliz com o que tinha feito e agora era tarde para estar a pensar em tudo o que não tinha feito ou o que podia ter feito de forma diferente. Não, isso era para aquelas pessoas que acreditavam em reencarnações e afins, elas podiam ficar com esses pensamentos enquanto voavam dali para fora. Ele contentava-se com o que tinha, dentro de si moravam todos os anos, os meses, os dias, as horas, os minutos e os segundos que tinha passado com os pés assentes naquela terra que em breve deixaria de existir. Aquele banco de jardim seria a sua última morada e seria mais do que suficiente. E elevou os olhos para o céu onde viu o último avião a fazer pela última vez aquele trajecto aéreo que ele tantas vezes tinha visto. Parecia ser um daqueles aviões que levam quase novecentas pessoas de uma só vez. E pôs-se a pensar se aquelas novecentas almas o conseguiriam ver ali, no seu banco de jardim, se achariam absurdo aquela pessoa ficar para trás, abandonado à sua sorte numa terra com fim a termo certo. Será que sentiam pena por ele? Ou será que achavam que cada um cava a sua sepultura, e que se era isso que ele queria, em breve o havia de ter? E ele sentiu-se, de repente, sozinho. Será que seria o único a ficar para trás? Não haveria mais ninguém a sentir-se como ele? Ninguém? Bom, teria que ser assim, nada havia a fazer, não havia mais tempo para nada. Talvez para mais um cigarro, não? "Olha, parece que não." Puff. Foi-se.
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