segunda-feira, novembro 24, 2008

Muda

Estava a chover. Como se o acordar ainda com o sol escondido já não fosse mau o suficiente. A combinação das duas coisas acabou por definir a sua disposição para todo o dia. Sentia-se ausente. Ou pelo menos, parecia que lhe faltava alguma parte de si. O dia acabou por ser rotineiro. Casa-trabalho-casa, com poucas surpresas pelo caminho. Logo pela manhã, ainda sem a passagem habitual pelo café, alguns colegas repararam que ela estava diferente, faltava-lhe o sorriso e a boa disposição usual, que era quase a forma limitativa como a representavam. Ela não se importava, até porque de vez em quando fazia questão de mostrar o seu lado mais abrupto e explosivo. E os seus colegas conheciam esse seu lado, apenas preferiam pensar no seu lado mais afável. Ela não se importava, se era assim que gostavam, assim fosse. Mas hoje tinham reparado nela pela falta de alegria no olhar, não seria bem tristeza, mas algo estranho se passava. Ela também sabia disso, mas não conseguia descortinar do que se tratava realmente. Nada se tinha passado para ela se sentir assim. Ao longo do dia, desconversou várias vezes quando lhe perguntavam o que se passava, e deixou as pessoas com as suas próprias especulações sobre o que seria. Na verdade, essa ausência estranha que sentia teve uma vantagem, um dia que prometia ser comprido e cheio de complicações acabou por passar depressa, sem rasto de qualquer arrelia ou ansiedade. Apenas o estranho sentimento que estava a caminhar para fora da estrada sem ao menos um mapa que a guiasse. No regresso a casa, o sentimento persistiu, enquanto caminhava pelas ruas e arcadas da sua vila, e quase lhe parecia que não as conhecia. Que estava a caminhar por ali pela primeira vez na sua vida. E começava a ficar preocupada, será que a sua memória lhe estava a fugir? Que todas as suas recordações representavam a ausência que tinha sentido durante todo o dia? A angústia cresceu e deixou quase sem respiração. Até que nesse preciso momento, a chuva parou e por um infímo segundo, o sol brilhou no meio das nuvens escuras que tinham dominado o dia. E os olhos dela, que começavam a encher-se de lágrimas, brilharam e viram que havia algo que regressava a ela. Algo que se tinha ausentado para paragens menos sombrias e mais radiosas. Algo que lhe era tão intrínseco como o próprio bater do coração. E tinha regressado. E ela chorou na mesma. Mas era um choro de alívio, um choro de boas-vindas, um choro de alegria por já não se sentir tão estranha. Sabia que amanhã era um novo dia e que já não se iria sentir incompleta. Porque ela tinha voltado.


(Foto tirada por J.)

4 comentários:

calamity disse...

...e se o sol não aparecer? Adiam-se as lágrimas.
Beijo

Nuno Guronsan disse...

Ou choram-se lágrimas de amargura pela ausência de tão importante parte de nós...

Beijos de volta.

J. disse...

ofereco-te esta a porta, nuno! ;)

gostei muito do texto!

bj

Nuno Guronsan disse...

Obrigado!
Pela porta e pelas palavras.

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