domingo, março 30, 2008

Sons of Shop Owners of The World Unite!

Primeiro chegou um, depois outros dois, e mais outro ainda. O primeiro recordo-me de o ver pela primeira vez há muitos anos atrás, quando a joalharia do pai dele ainda era na principal avenida da cidade. Quer dizer, hoje em dia continua a ser mas uns números mais acima. Lembro-me que o pai dele era enorme, em todos os sentidos. Alto e gordo, mas com uns dedos hábeis que conseguiam desmontar todas as peças de um relógio num ápice delicado. Não era uma pessoa afável, nem de perto nem de longe, tratava todas as pessoas que passavam pela loja com um profissionalismo quase clínico, quase frio. E era das minhas curtas passagens pela joalharia, pela mão da minha mãe, que me lembrava do filho do joalheiro, sempre atrás do balcão, apenas se vendo os olhos e o cabelo espetado, resultado do gel da moda. Rapaz franzino, quase o oposto do pai, mas também não devia ter mais que cinco ou seis anos. Nunca andámos na mesma classe, nem na mesma escola, mas a minha mãe lembrava-se bem dele. Dizia que ele era quase como eu, sempre a correr de um lado para o outro no recreio, a jogar à bola, ao berlinde, ou à apanhada, mas que, ao contrário de mim, quando chegava a altura de ir para a sala de aula, tornava-se tímido, sossegado e sempre muito concentrado. A minha mãe fazia sempre questão em salientar estas palavras, sempre para mostrar que eu era um aluado nas aulas, sempre a conversar com os colegas de carteira. O que realmente acontecia, e sempre aconteceu enquanto estudei, é que apreendia tudo com muita facilidade em termos de estudo, mesmo sendo um dos mais desatentos nas aulas. O filho do joalheiro também tirava boas notas, no seu estilo mais discreto. Pelo menos era isso que a minha mãe dizia. E assim nunca me tornei amigo dele, pelo simples facto de nunca nos termos cruzado a não ser nessas idas à joalharia. Há pouco tempo passei em frente à nova loja e lá estava ele, à porta, a fumar. Se não fosse o facto de ter conhecido o pai dele, não reconheceria nele o rapaz pequenino de que me recordava na minha infância. Tinha acabado por se tornar no seu pai, com a excepção do bigode e de uma barriga menos proeminente. Apenas por esse encontro, o tinha reconhecido agora, quando ele entrou nos balneários. Continua a ser sossegado, aparentando agora ser bastante mais introvertido do que as recordações contadas pela minha mãe. Os anos não o trataram bem e isso nota-se na sua cara, nos seus movimentos, em todo o seu corpo.
Os outros dois. Sei quem são apenas há alguns anos, quando começaram a trabalhar na loja de roupa da sua mãe. Ela conhece-me desde que eu era um bebé de colo, muito provavelmente. Na verdade, nunca a achei muita simpática. Era sempre um bocado brusca a falar, e com uma voz que soava como um trovão. Lembro-me que também era bastante impetuosa (termo simpático) para com os seus empregados e não se coibia de comentários depreciativos sobre os mesmos em frente aos clientes. Acho, não tenho a certeza, que isso me revoltava um bocado. Mas não o demonstrava, até porque ela gostava imenso da minha mãe. Mas isso também era habitual, a minha mãe sempre foi capaz de criar amizades com todo o tipo de pessoas. Se calhar é por isso que sempre a achei uma pessoa especial. Isso e o facto de ser minha mãe, claro. Só muito mais tarde, e quando a minha ginástica mental já era um bocadinho mais madura, é que percebi que a vida da senhora não devia ser nada fácil, ao criar dois filhos sozinha e ainda ter que gerir uma loja de roupa que chegou a ser das mais procuradas na cidade. Isso devia ser mais que suficiente para deixar qualquer um assim, amargurado com a vida. Dessa loja, lembro-me de uma outra senhora, irmã da dona. Um doce de pessoa. Já na minha infância ela aparentava ter muitos anos, mas isso não a impedia de ser uma jovem, que se metia comigo sempre que eu por lá aparecia, brincando comigo e, uma vez por outra, oferecendo-me um doce. O seu sorriso iluminava toda a loja e, às vezes, lembrava-me o sorriso da minha bisavó. E eu sorria com ela e deixava-me envolver pelo seu carinho. Nunca mais a vi. Na verdade, deixei de a ver mais ou menos na mesma altura em que comecei a ver por lá os filhos da dona da loja. Dizia-me a minha mãe que eram gémeos. Gémeos? Como é que podem ser gémeos? Um é a cara chapada da mãe e outro não tem nem um único traço que o faça aproximar sequer de ser irmão do outro. A minha mãe também diz que esse é mais parecido com pai, pois ela ainda se lembra de ter conhecido o senhor. São, pois, gémeos e trabalham com a mãe na loja de roupa, um no departamento de homem e o outro no departamento de criança. No trato com os clientes, não são semelhantes à sua mãe. Lembram muito mais a imagem mental da minha mãe sobre o pequeno filho do joalheiro. Calmos, de poucas falas. Aliás, com o correr dos anos a sua mãe também ficou assim, mais sossegada, menos autoritária. Pelo menos à primeira vista. São, pois, gémeos falsos, mas quem os visse a entrar neste momento nos balneários, mais facilmente diria que eram de facto gémeos verdadeiros. As mesmas roupas, as mesma mochilas, os mesmo movimentos enquanto abrem os cacifos. E na forma como cumprimentam o filho do joalheiro. Parece que todos se conhecem, não há grandes abraços, mas há cumprimentos cúmplices.
E eis que chega o último. Cumprimenta-me, pergunta-me se está tudo bem. Já nos conhecemos há muitos anos. Fizémos a preparatória e o secundário quase sempre na mesma turma. Apesar disso nunca travámos uma daquelas amizades que duram uma vida inteira. Na verdade, acho que nunca passámos do estádio de conhecidos. Conhecêmo-nos e pronto, nada mais. O que me lembro melhor é que por volta do 11º ano ele largou os estudos para ir trabalhar na loja de ferramentas do pai. Como a loja ficava mesmo na esquina do final da minha rua, continuei a vê-lo praticamente todos os dias. Juntou-se ao pai dele e a mais dois homens que com ele trabalhavam na loja. Era uma loja de ferramentas e quinquilharias, também faziam alguns serviços de acabamentos e ainda faziam chaves e fechaduras. O que mais gostava na loja era uma parede onde tinham todas referências em exposição. Era uma parede que parecia não ter fim, recheada de um número interminável de objectos de trabalhos, desde martelos e chaves de fendas até outras coisas que eu nem percebia muito bem para que serviam. O dono da loja era um senhor muito simpático e sempre bem disposto, e não admirava por isso que a loja estivesse sempre cheia, especialmente aos fins-de-semana, quando o meu pai passava por lá comigo. Os seus empregados também eram muito afáveis, e portanto não me custava mesmo nada estar lá uns minutos à espera enquanto o meu pai era atendido. Nessa altura, o rapaz ainda andava na escola e portanto era raro vê-lo na loja. Devia passar o tempo em casa a estudar, pelo menos era o que todos achávamos pelas notas que ele tirava. Um marrão. Era quase sempre o melhor aluno da turma mas também nunca fazia questão de esfregar-nos isso na cara. Era discreto, não fazia ondas. Por tudo isso, a decisão de ele abandonar os estudos pareceu-me ainda mais estranha. Nessa altura começou a aparecer mais e mais vezes na loja do pai. Normalmente acompanhava sempre um dos empregados, aprendendo com cada um deles a gestão da loja e de tudo o que com ela se relacionava. E assim passei a vê-lo cada vez menos vezes, até que mudei de casa e passámos a encontrar-nos muito esporadicamente nas ruas da cidade. Mas cumprimentávamo-nos sempre, como naquela manhã, no ginásio.
Ali estavam os quatro, formando um círculo, conversando entre eles em voz baixa. Todos eles falando, sem sorrisos. Quatro vidas com quem me cruzei em diferentes períodos da minha vida. Todos eles a trabalharem em lojas que também passaram pela minha vida. E todos eles um pouco estranhos, aos meus olhos. Quase como uma aliança à qual poderia ter pertencido e que agora me exclui. Ironicamente, bem vistas as coisas e se olharmos para o presente. Mal eles sabem...

1 comentário:

PenaBranca disse...

e agora?