sexta-feira, agosto 17, 2007

Corredores

A primeira vez que se cruzaram foi no supermercado. Num dia normal de semana. Ele estava a trabalhar, levando caixa atrás de caixa para a loja, enchendo as prateleiras que já conhecia de cor. Estava concentrado nas suas tarefas, apenas interrompendo-as para atender algum cliente que lhe perguntava algo. Estava a ser um dia calmo, afinal o sol lá fora brilhava, era dia de praia, as pessoas apenas iriam sentir a necessidade de fazer as suas compras muito mais tarde. Por agora podia trabalhar sossegado e sentir o calor através das clarabóias. E a luz, aquela maravilhosa luz matinal que ainda lhe ia dando alento para trabalhar num dia como aquele. Assim continuou o seu trabalho enquanto ia trauteando uma ou outra música mais "suportável" que ia passando no som ambiente da loja.
Ela ia percorrendo os corredores, com o seu carrinho de compras. Estava de férias e eram poucas as oportunidade que tinha para andar ali num dia menos agitado. Normalmente via-se forçada a ir ali ao fim-de-semana, quando a confusão era mais que muita, nunca tinha tempo para percorrer outros corredores que não fossem os da mercearia ou os dos frescos. E mesmo assim acabava sempre por se esquecer de alguma coisa. Hoje seria diferente. Tinha todo o tempo do mundo e podia fazer as suas compras ao seu ritmo, o ritmo das férias pelas quais tinha tanto ansiado.
Curvou para o corredor das massas, tinha a intenção de fazer algo para o jantar dessa noite, algo especial. Sentiu o fresco do ar condicionado quebrar sob a luz quente que vinha do lado de fora da clarabóia. Olhou para cima e fechou os olhos, a luz era demasiado intensa. Estava um dia bonito, demasiado bonito para passá-lo todo dentro de um supermercado. Começou à procura do tagliatelle de que gostava, quando ouviu a música que estava a passar. Sorriu. E começou a trauteá-la, com a perfeita certeza de que o dia ia ser excelente.
Ele estava de cócoras, enchendo uma prateleira mais baixa e nem deu pela presença de outra pessoa no corredor. Afinal, já há uns bons quinze minutos que estava ali sozinho, apenas com a companhia das caixas de massas várias que tinha para repor. Mas depois houve algo que o perturbou. Que o despertou do estado quase robótico em que se encontrava. Alguém trauteava a canção que se ouvia no som. Mas não era uma canção qualquer, era aquela canção. Uma canção que ele até hoje tinha dificuldade em compreender porque razão passava no som ambiente. Mas era uma canção que ele quase venerava, de tanta energia positiva ela lhe dava. E agora estava ali alguém no corredor a trautear essa mesma canção. Olhou para ela, estava à procura de algo nas prateleiras e estava mesmo a trautear a "sua" música, não era engano dos seus ouvidos. Ela era bonita, de uma beleza muito pouco artificial, ao contrário das mulheres que quase todos os dias passavam pelo seu corredor. E isso só fazia com que ele ficasse ainda mais interessado em observá-la em todos os seus movimentos.
De repente os seus olhares cruzaram-se. Ela já tinha procurado em vão o artigo que pretendia e quando o viu, com a farda usual dos funcionários, viu também uma solução para o seu problema. Ele e o seu olhar, "fugiram" envergonhados para a prateleira, tinha receio que ela pensasse mal dele por estar a observá-la e surgisse um enorme equívoco. Limpou o suor da testa enquanto se apercebia que ela se encaminhava para ele. Levantou-se e cumprimentou-a como se fosse uma cliente como tantas outras. Ela observou-o a levantar-se e ficou surpreendida com a aparência dele, por trás do "véu" da farda. Gostou especialmente da cara dele, dos traços que pareciam revelar alguém extraordinário num ambiente perfeitamente comum como aquele. Cumprimentou-o e perguntou-lhe se tinham o tagliatelle que ela procurava. Ele disse-lhe que iam deixar de ter essa marca italiana mas pediu-lhe que aguardasse pois ainda havia algum stock no armazém.
Na espera dela e no vai-vém dele entre armazém e loja, a música continuou a ecoar por todo o espaço. E eles os dois continuavam a trauteá-la e a sorrirem e a sonharem com um dia perfeito, num mundo perfeito.
Ele entregou-lhe a massa que ela procurava e, mais do que o sentido do dever cumprido, sentiu uma enorme satisfação por poder ajudar aquela mulher tão bela e tão intrigante. Ela agradeceu-lhe mil vezes pela ajuda e fitou-o mais uma vez e reparou nos seus olhos azuis, belos e profundos. Despediram-se, deram os bons dias, ela dirigiu-se para a caixa e ele continuou a sua tarefa de reposição. E por cima deles ouviram-se as últimas notas de uma canção que ambos tinham partilhado por uns breves momentos...



10 comentários:

Nuno Guronsan disse...

i feel like
today everything
will be alright
today is the day
for a change of season

if i call
you today
will you please
say this
one word
'love'

this new
morning's
memorandum number one:
you know it's a perfect morning
right from the start when you wake up

i'm humming
a song i just learned
in this new morning

love is always like this
it begins suddenly
for no apparent reason

especially in the morning
a clear early morning
on a day when
everything looks
shining bright
on a day when you whispered
one word: 'love'

this new morning's
memorandum number two:
the perfect world
will simmer with love

in the new morning
the smell of pancakes
i'm hungry

the follow up for
this morning's memorandum:
everybody is entitled
to a perfect day

in the new morning
fresh juice

everything is going
too well today
it's as if the world
was going to change today

when everything
goes
wrong
please just say this
one word: 'love'
and hug me

the summarised version
of this morning's memorandum:
one day
there will be a perfect world

a moment in the morning
a peaceful moment
in this new world
in this perfect world

A disse...

Cabe-nos a nós, por vezes, fazer de cada um dos nossos dias, um dia diferente.

Bonita a história....

Nuno Guronsan disse...

E o dia de ontem foi bem diferente e bem bom...

A história é o que tu quiseres que ela seja...

E não tenho ido ao divâ por pura falta de tempo...

Beijos.

Micas disse...

Há sempre uma música em cada momento especial...
Gosto muito do que escreves Nuno.
Beijinho e bom fim de semana :)

Nuno Guronsan disse...

Obrigado por continuares a passar aqui por este espaço, Micas.

Beijos, estejas no Minho ou na Alemanha :*

PenaBranca disse...

bom, o que vale é que há sempre razoes para ela voltar ao supermercado e esse tem sempre prateleiras vazias à espera de serem enchidas. basta esperar pelo novo encontro. rápido.

(e sim, faz-se já um filme inteiro desta pequena mas bonita história)

Nuno Guronsan disse...

Que grande mania temos de fazer filmes uns atrás dos outros... :)

Anónimo disse...

A vida é feita de momentos fugazes como este. E há que saber aproveitá-los, mas nem sempre o fazemos...
:)
bjs

PenaBranca disse...

nem mais

Sofia Viseu disse...

I'm all lost in the supermarket... :)