domingo, agosto 19, 2007

Calhaus

A segunda vez que se cruzaram foi num local muito mais invulgar. Numa ilha, de todos os sítios possíveis. Era, de novo, um dia normal de semana. Mas para ele era uma das suas folgas semanais, desirmanada do fim-de-semana. Já estava habituado, já levava alguns anos daquela vida. E no fundo, na maior parte das ocasiões, como a daquele dia, ele até gostava de andar na contra-corrente do resto das pessoas, pois dava-lhe a oportunidade de ir a locais que, de outra maneira, estariam submergidos num mar de multidão. E tinha sido esse mesmo o pensamento que lhe tinha ocorrido quando acordou nessa manhã, entrou no carro e se dirigiu ao porto de onde partia o barco que iria enfrentar as ondas rebeldes daquele imenso mar.
Já ela continuava de férias e deixou-se arrastar por um grupo de amigos para aquele passeio. Deixou-se ir não tanto pela ilha mas mais pelo prazer de estar com aqueles que verdadeiramente gostava e que poucas vezes via. E foi assim que resistiram, em grupo, àquela montanha-russa que alguns chamavam de barco. Solavancos para a frente e para trás, para os lados, eram constantemente agitados como se não passassem de marionetes nas mãos do mar impiedoso e trocista. Depois de todos os sacos de enjoo, lá conseguiram chegar a terra e os sorrisos voltaram novamente às suas faces.
O dia estava quente mas no carreiro onde ele se encontrava agora o vento era ensurdecedor e quase que prometia levitá-lo ao lado dos enxames de gaivotas que pairavam por onde quer que se andasse na ilha. Por trás dos seus óculos escuros, ele olhava toda aquela extensão de rocha rodeada de um azul límpido com extrema atenção, procurando os detalhes infímos que lhe podiam escapar enquanto o vento lhe agitava os cabelos sem cessar. Sentia-se bem ali naquele local ermo e sem ninguém à sua volta. Não era por norma uma pessoa solitária, mas gostava dos seus pequenos momentos de "silêncio", longe do que era o seu quotidiano.
Ela ria-se. Ria-se com os seus amigos e amigas, ria-se com as gaivotas e os seus voos rasantes, ria-se com os cabelos que lhe iam constantemente tapar os olhos, tudo naquele dia lhe parecia divertido e cheio de motivos para se rir como há muito não acontecia. Era a primeira a liderar o seu pequeno grupo na caminhada, umas vezes a subir, outras aos saltos, e outras a descer escadarias que nunca mais acabavam, esculpidas na terra pelo homem mas verdadeiramente modeladas pelos elementos naturais à sua volta. Enquanto o dia caminhava para o fim, e o seu grupo se refrescava nas águas verdes e "penosas" da praia, ela ia vendo o sol caminhar lentamente para o seu ocaso e pensava que devia fazer aquilo mais vezes, deixar-se levar em vez de tentar encontrar um significado para tudo. Deixar-se levar e não pensar demasiado. Simplesmente deixar-se levar.
Enquanto esperava pelo barco que o iria levar de volta, ele observava as pessoas na fila de espera. Várias nacionalidades, uns sozinhos, outros em casal, e alguns grupos de várias pessoas. E foi no meio de um desses grupos que a viu. Reconheceu-a imediatamente, a sua figura tinha deixado uma marca intensa na sua mente. Parecia ainda mais bela agora, com os cabelos a acompanharem o ritmo do vento e um sorriso cintilante. Ainda não tinham passado muitos dias desde o seu primeiro encontro e por isso, à medida que ela se aproximava dele, tinha a secreta esperança de que ela o pudesse reconhecer. O que, na verdade, era realmente uma secreta esperança de que ele pudesse ter tido um bocadinho de impacto nela. Pelo menos, uma pequenina parte do impacto que ela tinha tido nele.
A princípio não o reconheceu, por causa dos óculos escuros e porque era apenas mais uma pessoa no meio da multidão que esperava pelo barco. Mas quando se aproximou e ele tirou os óculos, o seu consciente voltou atrás no tempo até aquele encontro no supermercado. Aqueles olhos que procuravam absorver tudo à sua volta. A sua expressão traiu-a imediatamente, por isso cumprimentou-o com um sorriso. Ele também sorriu e deu-lhe as boas tardes, tentando esconder o pulsar intenso do coração, como se fosse outra vez um adolescente, há muitos anos atrás. Não houve ocasião para conversarem muito mais, os amigos dela começaram a puxá-la em direcção à rampa de acesso ao barco. Ela despediu-se com aceno, tentado não perder de vista os olhos dele, ele retribuiu o aceno e deixou-se ficar no cais mais alguns minutos enquanto a via afastar-se. Sabia que uma vez no barco, no meio de tanta gente e do grupo dela, não conseguiram voltar à fala. Mesmo assim, ela tinha sido, para ele, a melhor recordação daquele dia, naquela ilha que nem sequer conhecia. E começava a sentir algo que pensava já ter perdido para sempre, ou melhor, que lhe tinha sido roubado para todo o sempre. Ela não prestou muita atenção às conversas dos seus amigos durante o resto da viagem. Não conseguia tirar da cabeça aqueles olhos, aquela expressão, aquele homem. E, ao mesmo tempo, ou por causa disso mesmo, a sua alma vogava para outros caminhos, caminhos menos felizes e muito mais sombrios.



9 comentários:

SILÊNCIO CULPADO disse...

Como eu te compreendo. São momentos especiais esses que passam por nós. Particularmente especiais quando não são concretizados e a realidade não lhes roubou essa capacidade que nos deu de os recriarmos a nosso belo prazer. Não, tu não és cinzento: és uma alma sedenta de cor que mergulha no cinzento como um refúgio.
Gostei muito.

Nuno Guronsan disse...

Eu só sou cinzento às vezes, o Espaço é que normalmente o é a tempo inteiro :)

De qualquer forma, obrigado pela visita e pelas simpaticas palavras.

A disse...

E até aposto que a ilha é a da berlenga...! nunca vi tanta concentração de cocó de gaivota por metro quadrado LOL

Nuno, parabéns pela história.... muito engraçada mesmo... e é curioso como uma história aparentemente banal consegue assim prender a atenção... deve ser do amor, o leme que comanda o Mundo... ah pois é...

Beijinhos, busy man...

Nuno Guronsan disse...

A banalidade por estes lados começa a ser de uma constância previsível... :)

E tens olho para a coisa, sim senhora... e a minha ausência de comentários no divâ prende-se com a falta de interesse no assunto, na verdade. A menos que estejas a pensar criar uma associação tipo Encornados Anónimos. "Olá, eu sou o Guronsan e fui encornado. (todos juntos) Olá, Guronsan!!!"

:)

Beijos, moça.

Anónimo disse...

belo e pungente, como só a poesia do quotidiano pode ser.
eu gostei muito.
e seja o que for que deu mote a esta 'história', os meus olhos ficaram nos olhos dela e dele - e isso, meu caro, é precioso.
i wish they were real
and made to fit each other.
ou de como nos outros também podemos nós ser um bocadinho mais felizes.
abraço grande,

gi.

Nuno Guronsan disse...

"ou de como nos outros também podemos nós ser um bocadinho mais felizes."

Não há palavras para descrever o quanto gostei desta tua frase, Gi. Só por isso, e sabe-se lá de onde vêm estes escritos, já valeu a pena contar estas pequenas histórias...

Abraço.

PenaBranca disse...

e com os pedaços pequenos destas histórias se faz um grande filme! rrrr

Ms D. disse...

Olá Guronsan!!!

:) desculpa, foi mais forte que eu!

**

A disse...

... e não há duas sem três...

(venha a próxima)

- sim, eu já percebi que não falas comigo, e encaras o tema com alguma susceptibilidade (sendo isto uma vaga tentativa de te persuadir a dares um pulinho ao divã...) mas tudo bem, eu aguento o teu silêncio...


e só aposto que a próxima história é para lá nas Coreias.... lol

Previsibilidades à parte, apenas te quero dizer que sim... tenho lá um grupinho jeitoso de pessoas que é bem capaz de ficar contente por dares o teu testemunho... :P