sexta-feira, junho 24, 2011

Concerto.

Subiu ao palco, encandeado com o foco de luz branca que o seguia por todo o lado. Tanto assim que quase não conseguia ver as pessoas cujos gritos e aplausos e assobios afundavam o som da banda num caos sonoro que já não lhe trazia nada de novo. Noite após noite. Quase sempre a mesma reacção ao início de mais um concerto. Era naquelas alturas que se sentia mais perdido, mais só. Era nessas alturas que se agarrava ao microfone e ao seu apêndice com uma fúria que seria interpretada por todos os jornalistas de música como o comprovar da sua independência musical, a explosão do verdadeiro génio da banda. Merdas. Constantes e sempre sem uma única ponta de novidade de léxico. Quando apenas ele sabia a verdade. A verdade que o impelia sempre a agarrar no suporte do micro como se a sua vida dependesse disso mesmo. Não dependia, mas era sempre aos primeiros acordes da primeira música que as tonturas quase o derrubavam, quase o deitavam por terra. E ele agarrava-se, qual bóia salvadora, deixando o corpo a salvo o suficiente para cantar com todas as suas forças, gritando as palavras e versos que um dia tinha escrito num pequeno caderno oferecido pela pessoa que estava ali, a meia dúzia de passos dele, fazendo vibrar incessantemente as cordas de um baixo que ele próprio lhe tinha oferecido em troca. Era o último concerto dela. Era o último concerto da tourneé mas ele também sabia que era a última vez que ela pisaria o mesmo palco que ele. Talvez por isso ela estivesse ainda mais distante dele, perdida no seu mundo de notas musicais e cordas e distorção e sons ainda mais graves do que em todos os outros concertos. Ele cantava, cantava sempre, estivesse feliz, estivesse triste, estivesse terrivelmente triste, como nesta noite. Mesmo sendo uma tristeza conformada, resignada às consequências que o fim de uma relação pode ter em tudo à sua volta. A culpa tinha sido dele e quase podia jurar que de cada vez que o baterista fazia explodir as percursões, era como se estivesse a bater nele, a tentar dar-lhe murros com todas as forças que podia. Não era o fim da banda, claro. Havia demasiados compromissos, demasiados fãs, demasiado dinheiro, e no fim do dia, aquele era o emprego de quatro pessoas que pouco mais sabiam fazer para além de canções que pareciam agradar a todos os que se cruzavam com a sua música. Não, não era o fim. Já havia audições marcadas para a semana para arranjar-lhe um substituto. O guitarrista e o baterista, amigos de há muito, tratariam disso. Ele nem sequer conseguia imaginar alguém no lugar dela. Nem como baixista nem como... Eles tratariam disso. E sempre seria uma forma de estarem algum tempo afastados, talvez assim a mágoa que sentiam em relação a ele diminuisse um pouco. Não os podia censurar, a culpa era dele. Já estava embalado depois das primeiras músicas, já podia mandar o suporte ao chão. Aplausos e mais gritos estridentes. Guitarrista e baixista a tocarem lado a lado. Baterista a marcar o ritmo lento da canção enquando aproveitava para beber. E ele, sempre no centro das atenções, cantando, declamando, gritando, letras que a um tempo lhe lembravam momentos que não se repetiriam, que pouco significado já tinham. Mas ele conseguia, enterrava tudo isso lá dentro, e cantava, cantava, cantava. Cantava enquanto pensava por quantos mais anos conseguiria fazer isto, subir a um palco, ver as multidões literalmente aos seus pés, fazer com que tudo o que soava da sua garganta o fosse feito pela última vez na vida. Preferia pensar nisto, se sim se não, a ter de olhar nos olhos dos seus parceiros. Ainda havia demasiado rancor. Em todos. Menos nos olhos dela. Neles parecia haver uma espécie de alívio, por saber que aquela era a última noite. A última noite que tocariam juntos. A última noite em que partilhariam o mesmo quarto. A última noite. Música após música, tinham chegado ao espaço do encore. Todos se foram retirando do palco. As luzes apagaram-se. Os gritos do público continuaram. Até que apenas ele tinha ficado, sozinho na escuridão do recinto. Ali se deixou ficar enquanto as pessoas pediam mais canções, mais momentos para depois recordarem. Queria falar com eles. Queria poder dizer-lhes que se calassem, que por favor se calassem. Queria silêncio, queria conversar. Queria contar-lhes como o seu amor tinha realmente terminado, que não era apenas mais uma nova música que lhes estava a apresentar. Queria poder perguntar-lhes se sabiam o que se faz quando isso acontece, o que é que nos pode valer para podermos continuar em frente, como é que conseguimos fazer com que o nosso coração torne a bater. Não disse uma única palavra. Apenas esperou que a banda voltasse ao palco, esperou até que à sua volta os instrumentos entoassem as últimas duas músicas, aquelas que toda a gente à sua frente queria ouvir, pelas quais tinham esperado e esperado. As duas músicas que, ironicamente, eram sobre ela, a que estava ali a meia dúzia de metros dele. As duas músicas que, muito provavelmente, ele nunca mais conseguiria cantar novamente. Sabia que lhe chamariam tudo e mais alguma coisa. As mesmas pessoas que agora cantavam com ele, palavras após palavra, seriam as mesmas que não compreenderiam a sua decisão e o iriam queimar em praça pública. Seja. Ele não queria saber. Cantava mais uma vez e procurava os olhos dela, que sabia não estarem lá. O olhar dela já era outro. Era um olhar que já não queria saber dele para nada, um olhar já virado para o futuro que seria longe dele. Gritou as últimas palavras por cima do público, fugiu ao foco luminoso e a todas as outras luzes, e foi o primeiro a sair do palco. Não conseguia ficar ali e ver o último acto de um amor defunto. Tinha participado no velório, mas não queria ver as luzes e os aplausos e as vénias cobrirem o caixão de uma vida a dois que tinha deixado de respirar. Saiu do palco, fugiu por onde tinha entrado. As luzes do teatro começaram lentamente a acender-se. Obrigado, vocês são os maiores, nós adoramo-vos. Até à próxima.


2 comentários:

A.na disse...

Bravo Nuno.

Bela história. A sério. Isso até podia ser a história de inúmeras bandas - estou-me a lembrar dos No Doubt - ou de todas aquelas bandas mais antigas, destroçadas pelos amores perdidos.

No entanto, não posso deixar de compreender melhor o lado "dela" porque normalmente, nestas coisas de fim de relação, as coisas já morreram muito tempo antes de terem terminado de facto. Sem tanta paixão ou culpa ou fúria como descreves, um tanto ou quanto pueril-mente. Mas que são os homens senão pueris? Infantis?

:) não, não é uma provocação, não te rias. É mesmo o que eu penso e vejo em todas os pós-relações. As mulheres conseguem ter uma visão mais fria e distante depois de "acabar", menos apaixonada.

Ou se calhar é de mim... torno-me tão desligada daquela pessoa e daquela história que posso mesmo afirmar que é a minha característica mais surpreendente. Ou a que mais me surpreende. E se calhar até entristece. Como é que algo ou alguém que me fez tão feliz ou sofrer tanto, um dia cai no esquecimento ou numa memória que simplesmente não perdurou no tempo?

:)

Por isso eu gosto tanto daquele filme com a Kate Winslet e o Jim Carey...

Nuno Guronsan disse...

Eu infantil me confesso.
Eu apaixonado pelas tuas palavras me confesso.
E sim, eu também gosto muito do filme da Clementina e do Joel. :)

Beijocas grandes e um abraço ao gato Dylan ;)