sexta-feira, abril 30, 2010
Gula
Alenquer Bemhaja nem queria acreditar. Na sua longa carreira de três semanas e meia como inspector da Judiciária já tinha assistido a muita coisa. Três zaragatas conjugais, cinco furtos de pipocas no Alvaláxia, duas manifestações de naturistas em Rio de Mouro e uma tentativa de assassinato à estátua do Marquês. Mas nada se comparava à horrenda cena que se lhe apresentava naquela noite. Não fossem os vizinhos a notarem o desagradável cheiro a tomate que ainda persistia e nunca teriam encontrado o corpo a tempo de evitar o bolor que certamente se iria instalar. Ninguém merecia uma morte como aquela, nem mesmo o mais horripilante ser da terra. Nem mesmo os constantes protagonistas da ARtv mereciam um fim daqueles. Dois fins como aquele sim, apenas um não. De acordo com o médico legista, a mulher deveria ter 25 anos, um metro e setenta, sessenta e três quilos, destra, nascida no Alentejo, adepta do Desportivo de Chaves, sócia do viva-fit há dois meses, com especial apetência por fetiches relacionados com cintas anatómicas e capaz de comer três mcbacons seguidos. Alenquer Bemhaja ficava fascinado com os avanços da medicina forense e pensava que ainda a semana passada teria que ter aberto a carteira da vítima para saber tudo isto. Afinal, havia efeitos secundários positivos de tantas séries policiais televisivas, isto se excluirmos as vendas galopantes de luvas de látex. Aproximando-se do corpo, o inspector Bemhaja procurava não tropeçar nas muitas garrafas de quetchupe vazias que rodeavam o corpo da vítima. Parecia demasiado macabro alguém falecer de sobre-ingestão de molho de tomate, mas era exactamente isso que tinha sucedido. Um monstro tinha obrigado aquela pobre rapariga a ingerir quetchupe e mais quetchupe, uma garrafa após outra, sem parar. E nem ao menos tinha tido a decedência de colocar a garrafas vazias no contentor verde da reciclagem, apenas as deixou ali, todas espalhadas e, pior que tudo, sem qualquer vestígio de impressões digitais. Apenas uma coisa era certa, isto era um crime passional. E não era só a mensagem escrita a quetchupe que o assassino tinha deixado na parede, "isto foi um crime passional!!!". Não, havia algo mais no instinto de Bemhaja que lhe dizia isto. Talvez fossem as alcaparras que alguém tinha esquecido em cima da mesa. Ou talvez fosse mesmo o rasto de almôndegas que havia na escada de serviço do prédio. Fosse como fosse, o inspector não iria descansar enquanto não visse o criminoso atrás das grades. Ou, pelo menos, enfiado numa cataplana, numa cama de vegetais salteados, pronto a ser deglutido na cantina da esquadra de polícia, de preferência numa sexta-feira como alternativa às horrendas caras de bacalhau que o Sá Pessoa insistia em preparar como forma de protesto associativo. E enquanto cogitava sobre o crime, Alenquer Bemhaja tirou uma embalagem de nuggets do bolso e aproveitou um pouco do quetchupe na parede, deixando uma críptica mensagem a pairar sobre a investigação, "i to fo u rime onal!!!"...
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