quarta-feira, setembro 30, 2009

Porta fora.


Ainda me lembro dos tempos em que nunca teria coragem de dar certos passos. De certa forma o que sinto não é bem melancolia mas sim que estou frente a um espelho retorcido, daqueles que se viam na feira popular, e que aquele que me olha sou eu mas que também já não sou eu. É um outro ser humano, não sei se melhor ou pior do que eu, apenas muito diferente e distante no tempo. E o tempo, tal como alguns sacanas, não faz prisioneiros.

segunda-feira, setembro 28, 2009

Papelada

Estava à espera mas não sabia bem do quê. Afinal, estava tudo terminado ou assim ela o tinha dito da última vez que tinham estado juntos. Ela tinha sido bem clara, disse-o com todas as letras, repetiu-o várias vezes e ele ficou calado. Um silêncio que, mais que consentir que ela tinha razão, era um silêncio resignado e incapaz de contornar a racionalidade dela. E a conversa, bem como o seu relacionamento, tinham efectivamente terminado naquele instante. Então porque estava ele ali, em frente à estação de caminho-de-ferro onde em breve chegaria o comboio onde ela viajava?

Puxou de um cigarro. Era o último. Devia ser o último, pensava ele. Já tinha perdido a conta à quantidade de vezes que prometia a si próprio que ia deixar de fumar. Mas passavam-se dias, meses, e por vezes anos, e lá voltava ele ao hábito da nicotina. Normalmente o tabaco ajudava-o a concentrar-se, a pensar no seu próximo passo. Mas hoje não era o caso. Nenhum pensamento lhe ocorria enquanto o cigarro ia desaparecendo num monte de cinzas. Estava nervoso. O que iria ele dizer-lhe quando a visse? Conseguiria ele dizer todas as palavras que lhe ocorreram naquelas quatro semanas em que ela tinha estado fora? Ou ela nem iria dar-lhe uma oportunidade de falar quando o visse ali, especado à sua frente? Não, ela tinha que o ouvir, tinha que lhe dar uma chance de reparar o silêncio com que ele tinha acolhido as suas razões para estar farta das desculpas dele. Não, ela não seria cruel a esse ponto, por muito magoada que estivesse com ele. Ele tinha que falar com ela, tinha de lhe dizer o quanto a amava, o quanto não o sabia até ao momento em que ela lhe disse que se ia embora da vida dele. Ele tinha que lhe dizer que era um idiota, um anormal completo por não ter percebido isso antes. Por não ter percebido que a vida dele não estava completa sem ela, sem o amor por ela.

Estava frio. Meteu as mãos aos bolsos. Sentiu alguns papeis no bolso esquerdo. Tirou-os e olhou para eles como se fosse a primeira vez que os via. Rapidamente compreendeu que se tratava de um quase diário do que se tinha passado naquelas últimas semanas. Um bilhete de cinema, um bilhete de comboio e um talão de uma compra paga com o cartão de crédito.

O bilhete de cinema já andava nos seus bolsos há mais de um mês. Tinha sido a última vez que tinham ido juntos ao cinema. Tinham ido ao centro da cidade ver um filme francês que estava numa única sala. Ela adorava filmes franceses, gostava da língua e dos personagens, achava que mais ninguém conseguia fazer filmes como os realizadores franceses. Ele gostava deste amor que ela tinha pelo cinema francês. Se não fosse o bilhete, já não se lembraria do nome do filme. Lembrava-se que era sobre uma família e uma casa. Também se lembrava que o fim do filme o tinha apanhado completamente desprevenido e por isso tinha saído da sala com um travo amargo na boca. Ela tinha adorado, como sempre. Lembrava-se que depois do filme foram dar uma volta a pé. A noite estava quente e ela gostava sempre de falar imenso com ele, para saber o que ele achava do filme, se ele tinha gostado ou não e porquê. E normalmente acabavam sempre por falar deles próprios, se seria possível as situações do filme acontecerem com eles os dois. Se iriam ser sempre felizes, se iriam ter filhos e tornarem-se uma família, se afinal de contas não estavam destinados a ficarem juntos. Falavam disto tudo. E quando chegavam a casa, beijavam-se e chegavam à conclusão que a sua vida nunca seria igual a um filme francês.

O bilhete de comboio ainda não tinha sido usado e, pela data que tinha, também já não poderia ser usado. Tinha-o comprado uma semana depois de ela ter saído de casa, quando finalmente tinha descoberto que ela estava na casa de uns familiares, no norte do país. As noites que tinha passado em claro depois de ela se ter ido embora tinham-lhe retirado bastante do seu pragmatismo e ele tinha ido reagido aos seus impulsos sem pensar nas consequências. Só quando já estava na estação e com o bilhete na mão é que se apercebeu de que ela tinha mesmo razão quando o deixara. Que ele tinha-se portado de uma forma repugnante e que assim não havia paixão que pudesse manter-se intacta. Apercebeu-se também que o silêncio ensurdecedor com que ele tinha respondido aos gritos dela se devia a uma completa ausência de palavras minimamente justificadoras que ele pudesse dizer, e que esse silêncio ainda permanecia. Que ele sabia que a amava, que não sabia se ela ainda o podia amar, e que, pior que tudo, se se encontrasse com ela, não saberia o que dizer. Sentiu os olhos húmidos, meteu o bilhete de comboio no bolso e saiu da estação enquanto o comboio partia.

O talão de compra. Parecia que lhe ardia na mão. Virou-o ao contrário e reviu um número de telemóvel escrito a tinta permanente. Tornou-o a virar e foi-se recordando daquela noite passada num bar escuro, bebida atrás de bebida, cigarro após cigarro. Lembrava-se que nessa noite a angústia que o perseguia com a ausência dela atingiu o limite. Decidiu refugiar-se ali, longe do resto do mundo, só ele, o seu tabaco e o seu copo. Já se sentia resignado, já não queria saber dela para nada, mas isso não significava que no seu coração as coisas estivessem terminadas. Sentiu a presença de alguém que se sentava ao seu lado. Uma mulher. Uma mulher que lhe lembrava as actrizes francesas de que ela tanto gostava. Ela meteu conversa com ele, e ele sentiu-se abalar na solidão que pretendia. Mostrou-se receptivo e conversou também com ela. Não se lembra das palavras que foram trocadas, já tinha bebido demasiado para isso. Os únicos gestos que recorda daquela mulher eram o beijo ofegante que ela lhe deu antes de se despedir e o número de telefone, escrito à pressa nas costas de um talão. E lembra-se também que nunca lhe chegou a telefonar, que no dia seguinte se levantou com a mãe de todas as ressacas, e que, enquanto bebia o café e olhava através do vidro da janela, sentiu saudades dela. Sentiu que a falta dela era insuportável e que não se conseguia imaginar sem ela ao seu lado.

O cigarro estava morto entre os seus dedos. Guardou no bolso os papéis e apagou o cigarro com a ponta do sapato. Apertou o casaco e atravessou a estrada, na direcção da estação. Caminhava lentamente para o local onde sabia que o comboio em que ela viajava começava a surgir.

quinta-feira, setembro 10, 2009

Manual de instruções


Failure is always the best way to learn
Retracing your steps until you know
Have no fear your wounds will heal


às vezes gostava de ser norueguês e escrever estas coisas.
até porque depois de as viver, acho que é mesmo assim.
resta-me agradecer.
Takk så meget.

Inversão de marcha

O que é que passa pela cabeça de uma pessoa enquanto caminha durante treze quilómetros? Será que os pensamentos também se distraem com a paisagem, com o mar, com as ondas, com o céu, com as outras pessoas que andam ao nosso lado, que correm ou que pedalam? O silêncio não é total, há sempre um carro ou outro a passar na estrada, mas há alturas do caminho em que só ouvimos o mar, o vento, as nossas vozes a serem levadas pelo vento e, já muito ao longe, o toque de alarme de um farol. E por ínfimos segundos, o cérebro concentra-se, os neurónios reunem-se para um só pensamento, e somos invadidos por uma enorme onda de ansiedade. Ânsia para vermos a meta, o destino final, o horizonte a transformar-se em todos os nossos sonhos. Seria bom que bastassem apenas uns míseros treze quilómetros para que tudo se tornasse cristalino e tão óbvio que nem pareceria que o caminho tinha passado de uma pequena ruela para uma enorme recta islandesa. Sem gravilha, é certo, pelo menos não no sentido físico a que estamos habituados. Mas outros nevoeiros se levantam, outras nuvens negras vão surgindo, relâmpagos aparecem do nada, tudo meros sinais de uma provação que acaba de começar. A mente ressente-se, nada se consegue sem esforço, e os músculos gritam por todos os lados, rebeliando-se contra qualquer milímetro de avanço que nos atrevamos a dar. É uma luta fraticida, pois somos nós contra nós próprios, mind over matter e todas essas merdas de pacotilha que não passam de páginas mal impressas em livros de prateleira de hipermercado. Mas no final do dia, e quando limpamos o suor da testa, e esticamos todos os músculos do corpo até ao ponto em que parece que vamos quebrar em mil e um bocados, o nevoeiro fugiu, as nuvens negras dissiparam-se, os relâmpagos não passam de pequenos raios que saltam na superfície do sol que brilha e que nos aquece, qual amigo que nos suporta, espera por nós e que praticamente nos pega ao colo, dando tanto de si que quase parecemos um. Até ao momento em que cruzamos a linha de chegada e sorrimos o sorriso dos justos, dos que merecem ser felizes, no matter what...