Acordou com os primeiros raios de Sol da manhã, a entrarem sem desculpas pelas frestas da persiana. Olhos semi-cerrados, pálpebras lentamente a fugirem da escuridão da noite para a luz do dia. Músculos a a acordarem da hibernação, lentamente a regressarem à vida. Todo um corpo. Os seus olhos ficaram finalmente abertos, atentos a tudo o que o rodeava naquele quarto ainda com muitas sombras. Olhou para o lado. Delineado pelos raios de luz da janela, estava o corpo dela. Contemplava as costas dela. A nudez do corpo, a brancura da pele mergulhada nos cabelos loiros com pequenas manchas negras por raízes. Fitava o seu pequeno corpo nu, desafiando o seu olhar agora totalmente desperto. A sua mão percorreu as linhas das costas dela, planando sobre o seu corpo, evitando despertá-la do seu sono profundo. Sem a tocar mas com a mesma intimidade da noite passada, quando os seus corpos se encontraram, colados, fazendo um único organismo na sua ânsia de desaparecerem um no outro. Sentiu um arrepio atravessar todo o seu corpo. Uma espécie de electricidade sem o ser. Uma forma de o seu corpo perceber que o Verão já tinha terminado, anunciava-se o frio outonal. Tal como o cabelo dela que não se cansava de olhar, também a noite começaria a chegar mais cedo, a luz solar a baixar no horizonte dos seus ombros. Gostava dos dias longos, não gostava da noite que chegava sempre demasiado cedo. Levantou-se, silenciosamente, o sono dela era precioso. Vestiu as roupas que tinham ficado abandonadas no chão do quarto. Saiu, fechando cuidadosamente a porta, o único movimento concentrado na respiração dela, suave, quase inaudível. O resto da casa também ainda dormia. Aqui e ali, uma ou outra linha de luz, uma ou outra persiana que teimava em não recolher toda. Deixou que os seus passos o guiassem, em trânse, em falso sonambulismo, até ao quarto mais pequeno da casa. Também aí uma pessoa dormia tranquilamente. Sem pesadelos. Como devia ser sempre, pensava ele. Pessoas com cinco anos de vida nunca deviam ter pesadelos, devia ser proibido. Mas perguntava-se se seria mesmo assim, pensava e questionava-se enquanto olhava a criança meio tapada meio descoberta, espalhada pela cama que quase parecia de brincar. Que sonhos teria ele? Seriam como os sonhos da sua própria infância, já tão distante no tempo? Será que sonhava em voar no dorso de um pégaso? Será que sonhava em ser um bombeiro ou um médico? Será que sonhava em jogar futebol ao lado dos melhores craques do mundo? Será que sonhava com a sua mãe? Com o seu colo? Com as brincadeiras que fazia com os seus cabelos loiros com pequenas manchas negras por raízes? Será que sonhava com isto tudo? Era o seu íntimo desejo que a resposta fosse sim. Desejava até, com um bocadinho de egoísmo sim era verdade, que a criança pudesse sonhar com ele próprio. Com as brincadeiras que os dois faziam. Com os livros que ele lhe lia. Com as músicas ao som das quais dançavam em cima da cama. Desejava que os seus sonhos fossem tão bonitos como os seus dias. Acima de tudo, e não sabia como reagir perante tal pensamento, desejava que ele não sonhasse com o seu pai. Porque isso não seria um bom sonho. Que a criança não pensasse, no seio do seu sono, numa pessoa que o tinha abandonado, que o tinha deixado para trás. Um pai que apenas tinha deixado o seu nome, o seu apelido, e que não tinha qualquer interesse em se relacionar com a criança. Um pai que não o amava, não o conhecia, nem queria saber que a criança sequer existisse. Será que se podia realmente chamá-lo de pai? Ele não saberia responder. Enquanto olhava a pequena cara da pequena pessoa que ainda dormia, deixava que tudo isto atravessasse a sua mente. A criança sabia que ele não era o pai dela. Sabia que ele estava com a mãe e com ele, o filho. Nunca lhe tinham escondido nada, e nunca o iriam fazer. Ele já era muito inteligente e tinha um especial dom para descobrir mentiras. Seriam sempre honestos com ele. Os dois. Os três, lado a lado. Contra o resto do mundo. Como se fossem super-heróis das bandas desenhadas que ele lia até ser embalado nos braços de Morpheus. Não conseguia deixar de esboçar um sorriso sempre que via a criança a dormir assim, no sossego dos primeiros minutos de uma nova manhã. Fechou a porta, lentamente, vendo-o a dar as primeiras voltas debaixo dos lençois antes de acordar. Era um novo dia. Uma nova oportunidade de serem felizes.