domingo, novembro 13, 2011

Sonhar precisa-se...



Interior profundo.

Foi um dos primeiros a entrar na loja. Com o sorriso do costume, assente por baixo daqueles olhos que quase não precisavam de uma boca para falarem. Cumprimentou todos os empregados, depois estendeu também a mão para os poucos clientes que por ali andavam, tratando-os todos pelo nome próprio, qual registo civil ambulante cá da terra. E depois, quando me viu a caminhar na sua direcção, fez aquele gesto de quem acaba de ver um amigo de infância de quem já tinha muitas saudades.

Gosto de vir aqui. Não é que em casa me sinta sozinho, graças a deus a minha mulher é a melhor companhia que algum dia podia ter, especialmente agora que os filhos já não moram cá e os netos decidiram ir estudar para fora. Já há muitos anos que nos acompanhamos um ao outro e é assim que queremos acabar os nossos dias, quando chegar a nossa hora. Mas sair de casa, da minha horta, e vir até aqui, é muito mais que ir simplesmente às compras. É um sítio onde posso encontrar os meus vizinhos e amigos, pôr a conversa em dia, distribuir e receber sorrisos, falar com esta gente que trabalha tão bem e que nos recebe tão bem. São todos uma simpatia e já quase podiam ser da minha família. Ah, e aquele rapaz da cidade, esse é uma simpatia. Há ali coisas que me lembram o meu filho mais velho, há muitos anos, quando ainda morava com os pais. Não sei bem dizer o quê, mas sim, há ali qualquer coisa. Olha, lá vem ele.

Não me dá um abraço, se calhar para não chamar as atenções em demasia. Mas dá-me um aperto de mão demorado, alegre, feliz por me voltar a ver. Já fazia umas semanas que não nos encontrávamos. Diz que esteve para a capital, a visitar os filhos, a matar as saudades dos netos, a aproveitar para fazer uns exames também, há que aproveitar quando se tem um filho que é médico. Pergunta pelos meus pais, pela loja, pelos empregados. A tudo respondo com a maior das sinceridades, pois sei que essas perguntas são genuínas e não mera bisbilhotice. Agradeço-lhe mais uma vez a garrafa de aguardente que me deu da última vez que veio à loja. Que não tinha nada que se incomodar, que nós estamos ali para o ajudar e não para receber prendas. Ele diz para me deixar de tolices, que o prazer de oferecer foi dele e que apenas quer saber se estava boa. Digo-lhe que sim, e que o meu pai gostou também. Volta a sorrir como se não passasse de um jovem de vinte anos. E então do que é que precisa hoje?

Se não soubesse, diria que ele era mesmo daqui. Claro que não fala como nós, os que somos de cá, mas a forma como nos recebe, como fala connosco, como não se importa de nos ouvir, como sorri quando nos vê, nem se nota a diferença para os empregados que nasceram e sempre viveram aqui. Eu já desconfiava, mas quando ele me disse que os pais eram do norte, logo vi donde vinham as raízes dele. Não enganam. E eu sei do que falo. Sei bem como os meus netos são, eles que já não nasceram aqui na terra e que só vêm cá de férias, para me visitar e à avó deles. Já não é a mesma coisa. Não é que sejam mal-educados, ou que me faltem ao respeito, nada disso. Mas não é a mesma coisa. Por isso é que este rapaz é diferente. Mais terra-a-terra, mais parecido com as pessoas daqui. E está sempre disponível. Tenho que ver se lhe arranjo uma daquela compotas que a mulher costuma fazer por esta altura. Vai ficar todo contente.

Precisa de uns panos para a azeitona. Está na altura dela e tem de aproveitar que no próximo fim-de-semana os netos vão cá estar para o ajudar. Mostro-lhe os panos e pergunto se também precisa de ripadores. Diz que não tinha pensado nisso mas agora que lhos mostrei vai levar um par deles. Ajudo-o a levar as compras e acompanho-o até à caixa. Uma vez que está pouca gente na loja, ele aproveita para me contar mais uma daquelas histórias de quando era um gaiato e fazia a apanha da azeitona em vários terrenos aqui à volta. Gosto das história dele. Lembram-me as que o meu avô tantas e tantas vezes me contava e que acabei por quase decorar. Mas nestas história há uma diferença, quase sempre acabam por resvalar para alguma anedota, quase sempre rematadas com uma pequena caralhada e um sorriso maroto dele. Não há como rir com ele, deixando-nos sempre, a todos, com uma boa disposição que não tem preço. Despeço-me dele com um meio abraço e pergunto quando é que volta cá a vir. Também como sempre, diz que não sabe mas que da próxima vez me vai trazer a melhor compota que eu alguma vez provei, para mim e para o resto do pessoal. Trocamos sorrisos e despedimo-nos.

Lá levo eu mais coisas do que tinha planeado. Mas pronto, fazem sempre falta e se o rapaz não me tem lembrado, se calhar até tinha que cá voltar. Gosto sempre de conversar com ele. Não conheço muitos que, estando na posição dele, me aturassem assim. E o melhor de tudo é que se vê que não o faz por favor, nada disso, é mesmo dele. Bom, mas por hoje já chega, já lhe roubei tempo a mais. Ele diz que não, que é sempre um prazer ver-me. Acredito que sim, rapaz, olha que o prazer é todo meu. Pago as minhas compras, dou um beijinho à rapariga da caixa, que já a conheço quando ainda era uma bebé pequenita, e dou um abraço ao rapaz. Digo-lhe para manter as coisas como estão, que ele tem ali empregados bons e que sabem tratar dos clientes. Não mudes nada e guarda-os bem que eles são uma boa equipa. Na próxima vez trago compotas para todos, pois todos eles o merecem. Trocamos sorrisos e despedimo-nos.



(isto não existe. isto nunca aconteceu. esta terra não existe. ou será que sim?)


quinta-feira, novembro 10, 2011

Filosofia de Elevador

"A invisibilidade tem vantagens. Ouço muitas conver-
sas. Vejo estranhas coisas. Vou chegando à conclusão
de que o mundo, lá fora, não é muito diferente de um
circo. Há palhaços ricos e palhaços pobres. Domadores
de feras, estalando chicotes contra tigres vegetarianos,
que rugem em playback para assustar a turba, e são tão
medrosos que até uma barata os assusta. Há os equili-
bristas e os contorcionistas. Os que vivem no muro e os
que nunca tiveram coluna vertebral. Há os que fazem sur-
gir coelhos de dentro de cartolas, e os que desaparecem
com os coelhos e as cartolas, e todo o dinheiro dos justos.
O circo é o mundo condensado. Como o leite con-
densado, compreende?, meio artificial, mas muito mais
doce. A gente aprende a rir. Aprende a rir para combater
a dor."

José Eduardo Agualusa