Fiquei com vontade. Fiquei com vontade de passear em Lisboa ao fim do dia, com a luz moribunda do sol a banhar as águas turvas do Tejo. Fiquei com vontade de caminhar descalço nas praias da minha juventude, sentindo de novo a areia a envolver os meus pés, enquanto a água fria os vai lentamente afundando. Fiquei com vontade de voltar a escrever como já escrevi noutros tempos, apressadamente, com medo que as palavras caiam no abismo do pensamento, com medo que as palavras fujam de mim sem ficarem enclausuradas na tinta permanente de uma página. Fiquei com vontade de sonhar os sonhos intermináveis de criança, com a alma de um homem adulto que se deixa puxar para desejos labirínticos por mulheres esquivas e que sussurram palavras estranhas e que não me largam nem mesmo quando acordo. Fiquei com vontade de ler todos os livros que alguma vez me passaram pelas minhas mãos, abandonar-me nas suas páginas, embebedar-me com todas as palavras alguma vez escritas pelas mãos de sábios arquitectos da prosa e da poesia. Fiquei com vontade de cantar, de dançar, de voltar a dedilhar as cordas de uma guitarra e de ser capaz de escrever letras tão banais como sentidas, em canções que apenas existiram na minha cabeça. Fiquei com vontade de amar, de voltar a beijar os lábios dela, de sentir o meu coração explodir apenas com a sua presença, de ver o universo parar à minha volta apenas porque ela não está aqui, de sentir num abraço o seu corpo, de me prostrar aos seus pés, de declarar o meu amor sob a lua dela. Fiquei com vontade de tudo isto. E fiquei com vontade de viver para sempre, apenas para ver tudo isto concretizar-se...
"O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo."
Fernando Pessoa