Demorou um bocado a aperceber-se. Na verdade, foi mais do que um bocado. Na verdade, demorou alguns anos a ver o estado em que estava. Talvez fosse porque já quase nem se lembrava de algum dia ter escrito aquelas palavras. Não fosse guardar todos os livros onde alguma vez tinha aparecido o seu nome ou os seus escritos e provavelmente teria continuado a viver sem nunca se aperceber da sua triste condição. Mas, pronto, tinha pegado naquele livro antigo, com muitos contos de vários autores, no qual também ele aparecia com meia dúzia de páginas escritas quase de um fôlego num dia particularmente chuvoso com uma lâmpada que apenas iluminava o ponto onde a caneta se encontrava com o papel. E assim que começou a ler as suas próprias palavras, ou melhor assim que começou a recordá-las, um olhar estranho apoderou-se de si e de tudo aquilo que o rodeava e que os seus olhos alcançavam. O cigarro aceso que segurava entre os dedos da mão direita. O televisor mudo que o fitava do outro lado do quarto. Os papéis espalhados desgovernadamente por todas as duas camas do quarto. O brilho de faróis indo e vindo do outro lado dos vidros da janela. Tudo isto era incrivelmente estranho. Tudo isto era incrivelmente familiar. Mas mesmo assim, ele não queria, não pensava, apenas desejava que tudo não passasse de uma desagradável coincidência, desejava que tudo não passasse daqueles síndromes de idiotice generalizada estilo sexta-feira treze ou dez do dez do dez. E agarrando a cabeça com as duas mãos, o escritor dizia que não, não era possível, nada daquilo fazia qualquer tipo de sentido, tinha finalmente perdido todo e qualquer pedaço de juízo que alguma vez tivesse tido sob aquele crânio. Levanta-se, anda de lado para o outro no quarto, acende outro cigarro, vai à janela, abre-a, torna a fechá-la, apaga a luz, fecha os olhos enquanto inspira mais uma vez a nicotina, volta a abri-los, volta a andar de um lado para o outro, sente-se enlouquecer lentamente. Até ao momento em que passa pelo espelho. Pelo canto do olho, vê um vulto a passar pelo espelho. Volta atrás e coloca-se de frente para o mesmo. E é nesse preciso momento que se apercebe do seu fado, destino, o que lhe queiram chamar. É nesse preciso instante que vê os seus cabelos brancos, as suas rugas, os seus olhos inundados de raios de sangue de incontáveis insónias, as manchas que começam a percorrer os seus braços, as pregas do pescoço, a barba rala e áspera como lixa. E assim, num segundo, ele sabe que é mesmo verdade. Não o sonhou, não o imaginou, mas é mesmo verdade. Apaga o último cigarro e pega no livro esquecido de contos. Volta a passar as páginas, uma a uma, volta a ler as palavras que escreveu há tantos e tantos anos, volta a lê-las, uma a uma. E enquanto sente toda as suas forças a fugirem-lhe do corpo, todo o seu ser a transformar-se em cinzas de uma vida esgotada, enquanto tudo isso acontece, ele sabe que é mesmo verdade. Que tudo não passou de uma ficção. Que na realidade nada aconteceu, nada se passou. Que, no fundo, apenas viveu a vida de outrém. Que, ao virar a última página, a sua vida não foi mais do que aquela que imaginou para uma das suas desgraçadas personagens numa das suas míseras estórias.