terça-feira, abril 03, 2007

Hotel

A televisão está ligada, mas ele não olha para ela. Apenas distingue o ruído de pessoas a discutirem num qualquer programa de suposto debate de ideias. Está farto desses programas, que desde Abril o acompanharam a vida toda. Não está farto do conteúdo, mas sim da falta de ideias. Assim decide carregar no botão mute do comando remoto, enquanto puxa da sua única companhia naquele quarto anónimo. Acende mais um cigarro e senta-se na cama. Lá fora, do meio da escuridão, vem o contínuo ruído dos camiões que passam. Depois de quase quarenta anos sempre a andar de um lado para o outro, sempre com os acetatos atrás e toda a outra papelada, sempre a dormir em sítios estranhos, era de supor que lhe marcassem quartos melhores. Mas não, parece que estava condenado a sofrer aquele tipo de tortura até ao final dos seus dias, quando a privação de sono já não seria um problema por aí além. O fumo envolvia-o, a si e aos seus ossos cansados de sessenta e quatro anos. Quantos e quantos médicos lhe tinham dito que precisava de deixar de fumar e ter hábitos de vida mais saudáveis? Já tinha perdido a conta, tal como a quantidade de vezes que tinha ignorado esses mesmos conselhos. E mesmo assim tinha passado a marca dos sessenta. E para quê? Para estar sentado, sozinho, num quarto de hotel, tão indistinto quanto ele mesmo. E o pior de tudo era o sono não vir mais depressa, para forçá-lo a não ter aquelas típicas reflexões de vida que não o levavam a lado algum. Apagou o cigarro e deitou-se. Vestido sobre os lençois. Os olhos fixos num ponto qualquer da escuridão que tinha envolvido o quarto assim que ele desligou o televisor. Só o som dos camiões o impedia de adormecer. Mais um dia, mais um cabelo branco, mais uma dor numa parte qualquer do corpo. Tudo isto só, sem ninguém. E sem tempo para mudar o que quer que fosse.

2 comentários:

A disse...

Estás com uma produção de textos incrível Nuno...

Gosto particularmente de ler os teus contos, as tuas passagens imensas pelas vidas dos teus personagens.

Cinzento, este teu amigo de 64 anos :)

Mas apesar de tudo, penso que o tempo é algo de muito relativo e não se espartilha em anos ou horas. Quantos de nós morrem ainda jovens e quantos vivem até aos 100? Quantos vivem uma vida igual de todos os dias e quantos vivem cada dia intensamente?

Isto deu-me realmente que pensar... e não quero acabar num quarto de hotel, sozinha, a fumar os que tenho de deixar agora. (e está difícil)

Beijos grandes

Nuno Guronsan disse...

E os teus comentários também são sempre bons de se lerem... Que tal largares os cigarros (como eu estou a tentar fazer) e ficares viciada em comentários aqui no barraco? :)

Beijo.