domingo, abril 13, 2008

Prenda

Ao pé de ti sinto-me pequenino.
Os teus muitos anos quase me parecem equivaler a duas vidas. É certo que não me farto de escutar as tuas histórias, uma e outra vez, sobre lagares, videiras, campos cultivados a perder de vista, ou como costumavas surripiar uma ou outra maçã do quintal da bisavó Beatriz. Serão mesmo essas as minhas preferidas, de quando não terias mais que doze ou treze anos, a correr de um lado para o outro da aldeia. Fico fascinado. Podes não te lembrar do que fizémos ontem de manhã, mas ainda te lembras de peripécias que aconteceram há quase oitenta anos atrás. Quando o ar que respiravas era de outro tipo. Quando a garganta não te doía e ainda se ouvia a tua voz forte, no centro do coro paroquial. Quando os teus risos ainda não eram feitos de sussurros. Desde sempre que me lembro de chegar à aldeia e, ainda longe da porta da casa da estrada, já conseguir vislumbrar os teus cabelos brancos, com o vento a dançar à sua volta, enfeitiçado. Gostava do teu calor quando me abraçavas. Hoje gosto do teu sorriso de cada vez que me meto contigo. Gosto menos das lágrimas que vais derramando de vez em quando. Sei que na maior parte das vezes é mais forte que tu e que não as consegues impedir, mas não deixo de ficar triste por ver que o tempo finalmente te está a apanhar. Quando apenas dava pela tua cintura, pensava, ou melhor sonhava acordado, como muitas vezes o fazia, que ias viver para sempre, que estarias sempre ali, à distância da minha mão no centro da tua, enquanto percorríamos as estradas da aldeia. Mesmo quando passei a ter que falar um bocadinho mais alto, para que ouvisses bem os meus carinhos, e por vezes as minhas afrontas próprias de quem era jovem e ainda pensava que era o rebelde da família, mesmo nessa altura não duvidava que serias eterno, como as oliveiras que tantas vezes afagámos com as nossas mãos gretadas depois de mais um dia gelado a apanhar azeitonas do chão. Vejo agora, nestes dias em que estás ao pé de mim e voltaste a fazer parte da minha rotina diária, que assim não será. Que tenho de agarrar com as duas mãos todos os segundos que passamos juntos, todos os passeios que damos, todas as palavras que partilhamos e os risos que fazemos ecoar por todas as divisões da casa. Que não vais viver para sempre mas que viveste uma vida que eu apenas posso desejar igualar, em circunstâncias diferentes é certo, mas, em parte, da mesma forma como viveste a tua, sem nunca virar a cara às dificuldades e obstáculos que se foram colocando à tua frente. Às vezes, fazes um elogio sobre mim, à mesa do almoço. Nessas alturas, e tu sabes disso, é como se ficasse a pairar no céu, com essa oferenda que só tu me podes oferecer, mais valiosa que qualquer prémio de desempenho sacado sabe-se lá a que custo, mais inspiradora que uma plateia repleta no atlântico. É como se enchesses o meu coração com uma felicidade que muito poucas pessoas me podem dar, assim, sem esperar retribuição. Que a tento dar-te sempre que estamos juntos, na forma de uma palavra, de um beijo ou de um abraço. E que sempre me sabe a tão pouco, depois de todos estes anos de caminhada em conjunto.
És grande, meu querido avô.

4 comentários:

SK disse...

A dimensão trágica das pessoas que realmente amamos e nos seguram é um misto tremendo de beleza e um acre que chega a parecer injusto.
Texto magnífico, e tão bem apanhado esse paradoxo...
As verdadeiras homenagens são assim, passeios líricos encasacados com a beleza real.

Grande Abraço

L.N. disse...

Gostei muito Nuno,consegui sentir as tuas palavras , de cinzento não há nada aqui,obrigado por este belo espaço , abraço.

Nuno Guronsan disse...

Eu é que vos agradeço. Chegar a casa depois de um dia infernal como o de hoje e ler as vossas palavras... É um bálsamo que muito prezo.

Obrigado, meus caros.

R. disse...

Riqueza!!!

Um beijo