(À RC)
domingo, dezembro 02, 2007
Espelho
Era a sua obcessão. O seu televisor privado. A única forma que reconhecia como a sua aproximação às demais pessoas que o rodeavam todos os dias. Ali, ao olhar pelo espelho retrovisor, era quanto se sentia mais humano, mais real. Era capaz de ficar a olhar horas e horas para aquilo que se passava nos automóveis que passavam atrás de si. Devia ser por isso que tinha escolhido aquele emprego, que lhe permitia passar grande quantidades de tempo atrás do volante e diminutos minutos no escritório, onde teria que comunicar com palavras verdadeiras com os seus outros colegas. Ali, dentro do carro, não era obrigado a isso, podia contentar-se em ler os lábios e as conversas das pessoas no seu espelho retrovisor. O seu "horário nobre" eram os engarrafamentos, quando ficava parado num mar interminável de veículos e podia ver ainda mais atentamente os seus "programas retrovisivos". Um casal que discutia e gritava, enquanto invocava razões e mais razões para um deles ficar com a custódia da criança que chorava compulsivamente no banco de trás. Uma outra criança que contava à mãe como tinha corrido o seu primeiro dia de escola e como os seus novos colegas não o gozavam por andar numa cadeira de rodas. Um velhote que conduzia sozinho e ia cantarolando uma música antiga da Madonna. Um homem que falava ao telemóvel e dizia à pessoa do outro lado que mais uma vez se tinha esquecido de tomar a vacina da insulina, enquanto deitava pela janela um invólucro vazio de um Mars. Um outro casal que não dizia uma única palavra, os olhares distantes um do outro, tentando evitar qualquer troca de emoções. Ou um outro casal ainda que falavam dos seus planos de sair da cidade, ir para uma pequena terra no interior e começar toda uma outra vida, quem sabe com filhos ou, na melhor das alternativas, com gatos e cães. Tudo aquilo ele observava e sentia como se fosse a sua própria vida que estivesse em jogo em todas aquelas pessoas e palavras que passavam pelo espelho. Umas vezes reencontrava-as, num outro engarrafamento, num outro mês ou ano, a maior parte das vezes transformavam-se em fantasmas do seu passado, que o atormentavam em sonhos pela noite dentro. Tal como as sombras escuras que não conseguia distinguir quando tinha que conduzir à noite. Era o fecho da emissão. A mesma só seria retomada no dia seguinte, quando novas personagens surgissem no seu pequeno televisor que apenas via a vida lá atrás. Enquanto a sua própria vida se esfumava e ele não era obrigado a ter de vivê-la, aquela coisa indefinível e sem forma que ele próprio não sabia como lidar e com a qual não queria mesmo viver. Mas, como alguém diria, "assim é a vida: atenção ao prazo de validade."
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3 comentários:
Gostei. Eu quando estou para aí virado também olho para os passageiros dos carros ao lado. Tantos rostos e tantas estradas que se juntam num instante, no mesmo caminho.
É depois de ler textos assim que tenho a sensação de que muitos de nós nãio andam por aqui a fazer nada, mas tu fazes parte da outra facção: tens alma de escritor, jovem.
Sei que deves pensar que é mais um daqueles comentários do tipo "ah e tal, escreves bem" mas não. Não mesmo.
E terei pena se tal não acontecer: deambular pela Bertrand e ver lá um livro assinado por ti.
Apenas mais uma coisita: obssessão. com dois s's. Podes ir ao Dicionário ;) feminino...
Acreditas que só hoje vi que o tinhas dedicado a mim?
Obrigada. E fico assim: enCABULada.
Xi(spo já daqui para fora).
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