segunda-feira, maio 19, 2008

Reciclagem

Entrou acabado, sujo e vazio. Era a sua última viagem, dali já não haveria saída. Pelo menos não com a forma que ainda tinha hoje. Aquela seria apenas uma recordação, daí a algumas horas. Mas será que ele se iria lembrar, perguntava-se. Ou tudo não passaria de uma espécie de reencarnação, sem memória das vidas anteriores. Era uma pergunta que rondava os recantos da sua mente, sem resposta possível. Não sabia o que iria acontecer-lhe uma vez chegado ao fundo do túnel. Não haveria uma luz incandeante mas sim chamas, chamas purificadoras, que lhe dariam uma nova forma, uma nova utilização, um novo começo, como ele preferia pensar. Nada seria o mesmo a partir daquele momento. A sua vida iria perder o significado. A sua morte nem sequer ganharia qualquer significado. Algures pelo meio esperava que algo sobrevivesse. Uma pequena réstia do que tinha sido. Mais não fosse, pelo menos uma imagem, uma fotografia do que tinha visto, ouvido, saboreado, cheirado, manuseado. Concentrou-se naquilo que mais de sagrado tinha gravado no seu coração. À medida que a viagem chegava ao fim e sentia o calor a aproximar-se, fechou os olhos e ali estavam, tão nítidos como no primeiro dia em que os tinha beijado. Os lábios dela. Os lindos lábios dela. E assim prosseguiu, em direcção ao seu novo formato, sem nunca esquecer os lábios daquela que já não podia beijar.

7 comentários:

PenaBranca disse...

andas a fazer demasiadas visitas de estudo. só por teres visto um recipiente de iogurte líquido na central de reciclagem, já te poes a fazer filmes destes? :-)

Nuno Guronsan disse...

Não sei de que é que estás a falar.

:)))

Anónimo disse...

Andas-te a inspirar junto dos teus avós e a deliciar-te com o amor deles?
Para além dos copos de iogurtes, claro !
:-)

Nuno Guronsan disse...

Haja boas inspirações!

Anónimo disse...

"Aquela vozinha pedinchona e sumida de menina centenária...
O que mais impressiona é precisamente isso: O seu triunfo sobre o tempo. O facto de saber que existiu infinitamente antes de nascer e infinitamente depois de morrer" (adaptado de Rosa Montero)

Nuno Guronsan disse...

Uma enorme vénia...

(Vou mostrar isto à minha avó e explicar-lhe que a última frase é sobre ela própria.)

Abssinto disse...

A memória (antes que Herr Alzheimer chegue...)

abraço