sexta-feira, maio 23, 2008

Negativo


Ela tirou mais uma fotografia. Sentiu a necessidade de não virar as costas ao seu vício. Sabia que aquela fotografia iria apenas levá-la a tirar outra, e mais outra ainda, e continuaria a fazê-lo até o cartão da memória ficar cheio. Não conseguia parar. Aliás, se algum dia o tentasse, seria um pouco como tentar parar de respirar. Quem é que conseguia fazer isso? O único resultado seria, após alguns segundos, um inspirar profundo de largas golfadas de ar ou, no seu caso, um disparar ininterrupto da objectiva, captando todos os milímetros à sua volta. E nem se podia dizer que fosse uma coisa de turista, pois a máquina andava consigo todos os dias, para todo o lado, e raramente havia um dia do seu quotidiano em que não tirasse pelo menos algumas dezenas (ou centenas) de fotografias, que acabavam por se acumular em pastas e mais pastas nas entranhas do seu laptop. Os seus dias não eram vividos para a fotografia, mas quase. Não conseguia explicar o porquê deste hábito (ou vício, ou neurose, ou o que lhe queiram chamar), e de algum modo já se tinha acostumado aos olhares de lado, aos comentários jocosos e até mesmo às atitudes recriminatórias daqueles que se diziam seus amigos. Ela permanecia calada e tentava lembrar-se de quando tinha passado a tirar fotografias como quem come, ou bebe, ou dorme. Sempre tinha gostado daquele segundo em que um momento da nossa vida fica preso no tempo, fixo e imutável, recordado para sempre ou esquecido e esquecível numa gaveta qualquer. Mas lembrava-se do evento que a tinha feito cair neste mundo interminável de flashes. Lembrava-se que no ínicio ele não passava de uma paixoneta de escritório. O mesmo que tinham sido um professor seu da faculdade ou mesmo um acólito da paróquia que chegou a frequentar. A coisa apenas mudou quando descobriu que havia um sentimento mútuo, que ele também gostava dela. E aí voltou a sentir amor e, principalmente, a sentir-se amada. Era um amor fora de horas de expediente, sem as amarras de um escritório que não era muito permissivo a relações entre os seus ocupantes. E assim, durante o dia, tinham de contentar-se com os seus olhares e apenas através deles falavam um com o outro. Logo que se viam longe dali, abraçavam-se e beijavam-se como se se tivessem passado séculos sem sentirem o corpo um do outro. Era um amor recheado de momentos únicos, tal era a intensidade com que os viviam. E tudo se desencadeou quando ele começou a documentar os seus dias com a máquina fotográfica do seu telemóvel. E ela começou a ficar assombrada com aquelas fotografias captadas nos momentos certos, mas ao mesmo tempo já perdidos no passado. E começou a ver a fotografia como a ferramenta necessária para guardá-los no presente, ao seu lado. E passou ela a tirar fotografias com ele, por onde quer que passassem, querendo a todos os segundos guardar a beleza pura que via em tudo, quando estava com ele. O passo seguinte era óbvio. A beleza das fotografias que ela tirava apoderou-se de tal forma dela que, fora da sua relação, a beleza das outras coisas minúsculas que a rodeavam também a hipnotizava e daí à máquina passar a fazer parte dela, o tempo passou num piscar de olhos. O ímpeto da objectiva seguia-a para todo o lado e ela não lhe resistia. Lembrava-se das fotografias das suas viagens com ele, a sítios familiares e a locais remotos e desconhecidos. Lembrava-se das fotografias das ruas, dos prédios, das árvores que passavam por ela, todos os dias, no caminho para o escritório. Lembrava-se das fotos deles os dois, nus, nos braços um do outro, olhos nos olhos, enquanto o temporizador ia chegando ao fim. Lembrava-se do sol, da lua, das estrelas, das luzes dos candeeiros, de uma flor, de uma pedra, de todas as pequenas coisas que a levavam às lágrimas perante tamanha fragilidade, enquando o flash disparava uma e outra vez. Mas parecia que algo tinha desaparecido. Perante tantos e tantos instântaneos de pura magia, ela começou a constatar que o seu coração se ia esvaziando, que o amor que até há pouco tempo se tinha apoderado dele começava a fugir-lhe implacavelmente. Ele parecia-lhe agora um estranho e ela, aos olhos dele, parecia nunca ter existido na sua vida. Tinham-se tornado desfocados e já não era nítido o amor que os tinha unido. Na verdade, esse amor nunca tinha passado de uma polaroide magnífica que o tempo, contudo, foi desbotando até não se perceber nada mais a não ser um borrão. Ele saiu da vida dela, e ela refugiou-se na única coisa que lhe dava prazer e que nada lhe negava. Comprou uma digital de última geração, inúmeros cartões de memória e prosseguiu a sua vida, ou o que restava dela, de máquina em punho, fotografia após fotografia. Mas, de vez em quando, naquelas alturas em que a solidão se torna insuportável e parece que as paredes da sua casa se vão fechar sobre ela, nessas altura, ela volta-se para as fotos mais antigas, para as memórias que ficaram do rosto dele, junto do dela. Mas por muito que ela deseje, nada daquele pedacinho de papel mate vai voltar ao presente, e tudo aquilo apenas se torna numa recordação envenenada, que apenas consegue com que as lágrimas dela, uma a uma, apareçam na sua face, enquando o temporizador vai fazendo o seu papel. Tirando fotografias, uma após outra.

(Foto tirada pela Gurua Espiritual, e editada por mim)


6 comentários:

Anónimo disse...

A morte é a certeza de um novo início!

Anónimo disse...

A vida (o amor) nunca é reparada. É sempre recriada de novo.

Anónimo disse...

Aquele lugar magicamente íntimo, obscuro e ocenânico com manifesta capacidade de separar como também de unir... (R.Montero)...

Anónimo disse...

É engraçado reconhecer algumas das fontes de inspiração destas linhas e dois bocados da minha fotografia.

:)
bj
RF

SK disse...

Vénia, Amigo.
Transpira humanindade a cada letra!
Uma tristeza solene, bela, digna.

Abraço!

Nuno Guronsan disse...

Obrigado, SK. Obrigado, Cavaleira. As vossas palavras é que merecem as verdadeiras vénias.

Minha querida Gurua, obrigado pela fotografia, foi das melhores que vi até agora da terra das bolas de berlim. Acabei por a editar para proteger possíveis testemunhas :)))
Ah, e as fontes de inspiração são inúmeras, apesar de reconhecer que a mais identificável tem a ver com a senhora da mala :))) Beijos.